A colaboração premiada consiste num dos principais instrumentos estatais para a efetividade da persecução penal. Prevista em diversas leis especiais, tais como a Lei 8.072/90 (artigo 8º), a Lei 9.613/98 (artigo 1º, §5º), a Lei 11.343/06 (artigo 41) e a Lei 9.807/99 (artigos 13 e 14), e até mesmo em tratados internacionais (Convenção de Palermo e Convenção de Mérida), teve sua disciplina inicialmente vinculada apenas à delação de coautores e partícipes.

O regramento mais pormenorizado está estampado na Lei 12.850/13. Essa técnica especial de investigação criminal (meio extraordinário de obtenção de prova) ganhou enorme notoriedade em virtude da operação “lava jato”, e tem sido bastante utilizada pelos investigados e réus para auxiliar na busca da verdade. Não há dúvidas quanto à sua natureza dúplice, porquanto não se resume a mero instrumento persecutório do Estado-Investigação e Estado-Acusação, consistindo também em estratégia de defesa.

Possuem legitimidade para celebrar o acordo de colaboração premiada tanto o delegado de polícia quanto o membro do Ministério Público (artigo 4º da Lei 12.850/13), em razão de o primeiro ser o presidente do inquérito policial (artigo 144 da CF e artigo 2º, §1º da Lei 12.830/13) e o segundo ser o titular da ação penal pública (artigo 129, I da CF e artigo 24 do CPP).

Os atos de negociação incluem todos os contatos e tratativas, desde o contato inicial até a formalização do acordo.

 Desde logo, urge que três regras fundamentais estejam sempre presentes na mente do operador: a) sempre ter cautela ao realizar a colaboração; b) a necessidade de corroboração da colaboração (a regra da corroboração); c) necessidade de fazer acordos com baixos integrantes da organização criminosa para incriminar seus líderes.

 Vejamos separadamente.

 A primeira regra essencial nesse tema é ter sempre cautela ao realizar a colaboração.

 Não se pode esquecer que se está lidando com uma pessoa que já praticou um ou mais delitos e está interessada em obter benefícios legais. Como já se afirmou, nesse tema “estar precavido é estar preparado”.

 Assim, é imprescindível agir com cuidado e cautela. Porém, ao mesmo tempo em que deve estar precavido, não se deve desconsiderar sistematicamente suas afirmações.

 Como afirmava Giovane Falconni, juiz responsável pela Operação “Mãos Limpas” na Itália: “Por experiência, estou convencido de que o único comportamento eficaz e justo em relação aos arrependidos é, sem dúvida, verificar atentamente seus propósitos, mas sem depreciar sistematicamente suas afirmações”.

Outra regra essencial é a necessidade da corroboração. Como será visto mais à frente, as declarações do colaborador precisam ser reforçadas por outros meios de prova para levar à condenação. Sozinho, as declarações do colaborador não levarão a lugar nenhum.

 Veja, nesse sentido, o quanto dispõe o art. 4º, § 16: nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.

 Por fim, a terceira regra de ouro deve ser: “faça acordo com ‘peixes pequenos’ para pegar ‘peixes grandes’”. Isso é moral e juridicamente mais justificável.

 Assim, o acordo não deve ser realizado com o líder da organização criminosa para incriminar os subordinados. Ao contrário, como lembra Sérgio Moro, o benefício da colaboração deve ser concedido apenas àqueles acusados de pequena ou média importância para atingir os líderes da organização, em um verdadeiro efeito dominó.

 Segundo o referido Juiz Federal, “o método deve ser empregado para permitir a escalada da investigação e da persecução na hierarquia da atividade criminosa. Faz-se um acordo com um criminoso pequeno para obter prova contra o grande criminoso ou com um grande criminoso para lograr prova contra vários outros grandes criminosos (…)”.

 Realmente, não teria sentido conceder o perdão para o líder da quadrilha, permitindo que os executores sejam presos.

 Isto vem, de certa forma, reconhecido no art. 4º, §4º, da nova Lei.

DAS DÚVIDAS QUE NORMALMENTE SURGEM NA COLABORAÇÃO PREMIADA

 Durante as tratativas, sempre há a dificuldade de como chegar a um acordo.

 O membro do MP já deve se comprometer com o acordo, antes de saber o que o investigado sabe? E se o colaborador se auto incriminar e depois o acordo não se concretizar, não poderá se prejudicar? A dificuldade é que o Promotor/Delegado, para decidir se deve realizar o acordo, terá que saber necessariamente o que o colaborador poderá contribuir e quais documentos/provas possui, antes mesmo de se comprometer a firmar o acordo.

 O investigado, por sua vez, pode ficar inseguro de ser prejudicado pela sua própria confissão e pela indicação de provas sem que venha a ser formalizado o acordo. O que fazer? Quem deve dar o primeiro passo?

Inicialmente, a questão passa pela necessidade do estabelecimento de confiança entre o membro do MP e o colaborador (sempre com cautela!).

No entanto, a principal dica antes de sair falando tudo o que sabe é fornecer uma prévia do filme que pretende apresentar.

Posteriormente, havendo interesse do MP em ver o conteúdo do filme peça uma amostra e prometa ao colaborador que aquilo que ele disser não será utilizado em seu prejuízo.

Para tanto pode ser firmado um pré-acordo, indicando que as provas produzidas antes da concretização do acordo não poderão ser usadas, o que deve ser respeitado.

Assim, para que o réu/investigado colaborador não fique em situação desconfortável, enquanto o acordo não for formalizado, o membro do MP não deve utilizar, em hipótese alguma, os elementos e provas apresentados nestas reuniões preliminares pelo colaborador em seu desfavor.

Nos EUA são chamadas proffer session, também denominadas “queen for a day”. E caso o acordo não se concretize ao final, deve-se desconsiderar todas as informações apresentadas pelo colaborador durante as tratativas. Do contrário, haveria afronta ao dever de lealdade, que deve pautar a atuação do membro do MP.

 Assim, somente após a realização do acordo definitivo (por escrito e homologado) é que o membro estará autorizado a utilizar das provas e elementos apresentados pelo colaborador.

 Parece ser esta a ideia que orientou o legislador a prever, no artigo 4º, §10, a seguinte regra:

  “As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”.

 Veja que, ao contrário de outras passagens, aqui o legislador utiliza não a palavra “acordo” (como o faz no artigo 4º, §6º, §7º, §9º, §11 e artigo 6º, artigo 7º, caput e §3º), mas sim à palavra “proposta”.

 Assim, havendo ou não o pré-acordo, ocorrendo retratação da proposta – por qualquer motivo – as provas apresentadas pelo colaborador não poderão ser utilizadas em desfavor do investigado.

 O que significa a expressão “exclusivamente em seu desfavor”? Segundo nos parece, embora a lei não tenha sido clara, significa que aquelas provas apresentadas pelo colaborador não poderão ser utilizadas pela acusação em face dele, para prejudicá-lo, sob pena de ilicitude, em decorrência da violação ao princípio do nemo tenetur se detegere, conforme bem lembra Vladimir Aras.

 Porém, nada impede que o investigado utilize aquelas provas apresentadas para se defender em juízo das acusações formuladas contra ele, razão pela qual o legislador utiliza a expressão “exclusivamente em seu favor”.

Ou seja, não haverá ilicitude ou proibição de utilização da prova por parte do colaborador.

Porém, poderia o MP utilizar as provas apresentadas em desfavor de outros agentes, que foram incriminados durante as tratativas?

Não nos parece que seja possível. Se não houve um acordo efetivo, homologado pelo juiz, é como se aquelas provas não tivessem nunca chegado ao conhecimento do MP.

Essa situação é diferente, porém, quando há um acordo homologado e esse é rescindido pelo acusado, em razão do descumprimento do acordo homologado.

Nessa hipótese (rescisão), não há nenhum óbice a que as provas sejam utilizadas em desfavor do acusado ou de terceiros incriminados.

 Formalização do acordo

Chegado a um acordo, as partes devem formalizá-lo por escrito, nos termos do art. 4º, §7º, e no art. 6º.

 Adotou-se a prática, desenvolvida inicialmente na Força Tarefa do caso Banestado e inspirada no direito norte-americano, de se realizar um verdadeiro “contrato”, com cláusulas contratuais entre as partes.

 Há basicamente quatro vantagens do acordo escrito: (i) traz maior segurança para os envolvidos; (ii) estabelece com maior clareza os limites do acordo; (iii) permite o consentimento informado do imputado, assegurando a voluntariedade; (iv) dá maior transparência e permitir o controle não apenas pelos acusados atingidos, mas do magistrado, dos órgãos superiores e pela própria população em geral.

 Assim, o acordo escrito traz maior eficiência para a investigação, ao tempo que melhor assegura os interesses do colaborador e dos imputados.

 Conteúdo do acordo

O artigo 6º dispõe: “O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter: I – o relato da colaboração e seus possíveis resultados; II – as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; III – a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; IV – as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; V – a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário”.

 O legislador não apenas impõe que o acordo seja feito por escrito, mas também estipula um conteúdo mínimo a ser tratado. Assim, acordos orais não podem mais ser considerados como forma de acordos de colaboração.

 O inc. I do art. 6º tem em mira a eficácia da colaboração. Como ainda não foi executada a colaboração, as partes constarão qual será a forma de colaboração e os possíveis resultados esperados.

 Ademais, segundo o inc. II, no acordo deve constar a proposta ofertada pelo Ministério Público ou do Delegado de Polícia e suas condições. Não restou claro como deve ser esta proposta, ou seja, se genérica (por exemplo, apontando os benefícios previstos em lei ou, ainda, apenas a previsão de uma causa de diminuição de 1/3 a 2/3) ou se deve ser específica e concreta (indicando que o MP propõe uma causa de diminuição de 1/3 em caso de os resultados serem atingidos).

 Nada obstante posições em sentido contrário, parece-nos que não haveria sentido em haver propostas genéricas e sem concretude.

 O que o legislador busca é dar segurança para as partes, de sorte que deve constar, clara e concretamente, qual a proposta feita pelo MP ou Delegado, mas está é uma questão para outro tópico.

 O inc. III se preocupa com a voluntariedade do acordo, assegurando a dupla garantia, ou seja, que haja aceitação pelo colaborador e seu defensor. Em caso de discordância de qualquer um deles, não nos parece que o acordo possa ser realizado.

 Exige-se, ainda, assinatura de todos os envolvidos, conforme inc. IV, para assegurar a autenticidade do acordo e, ainda, a sua voluntariedade.

 Por fim, o inc. V prevê que poderá, quando necessário, haver especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, nos termos da Lei 9807/99.

 Conforme dito, estas cláusulas são um mínimo exigido pelo legislador. Nada impede – ao contrário, é de cautela que ocorra – que outras cláusulas sejam estabelecidas para antever eventuais problemas, sobretudo à luz do caso concreto. Assim, por exemplo, importante o estabelecimento de cláusulas que preveem a rescisão do contrato pelas duas partes, com as suas consequências, bem como a limitação temporal do acordo.

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