or maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Habeas Corpus (HC) 134591 e manteve a condenação de um adulto em razão de um beijo lascivo dado em uma criança de cinco anos de idade. O HC foi impetrado contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, ao analisar habeas com as mesmas alegações, também havia mantido a condenação.
O réu foi condenado pelo juízo da 1ª Vara Criminal de Igarapava (SP) a oito anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, por estupro de vulnerável (artigo 217- A do Código Penal). Em exame de apelação penal, o Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) desqualificou o ato para a contravenção penal de molestamento (artigo 65 da Lei de Contravenções Penais) e impôs ainda pena de multa. O Ministério Público interpôs recurso e o relator no STJ deu provimento para restabelecer a condenação proferida em primeira instância.
Pena desproporcional
No habeas corpus impetrado no STF, a defesa afirmava que a pena é desproporcional à conduta, pois o ato praticado foi um único beijo em lugar próximo a outras pessoas. De acordo com a defesa criminal, embora a conduta do réu seja “condenável e reprovável”, não teria havido conotação sexual no beijo ou danos psicológicos permanentes à vítima.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou pela manutenção da condenação em primeira instância. De acordo com o parecer, a conduta de beijar uma criança de cinco anos na boca se qualifica como ato libidinoso, o que configura estupro de vulnerável. Não seria viável, assim desqualificar o ato para uma simples contravenção penal.
Pedofilia
Em voto proferido na sessão de 18/12/2018, o ministro Alexandre de Moraes afastou a ocorrência de ilegalidade ou de constrangimento ilegal na decisão do STJ que manteve a condenação e observou que houve um ato clássico de pedofilia. Segundo ele, o fato definido como crime na lei (ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos) existiu, e não é possível desclassificar a conduta para molestamento. “Não houve conjunção carnal, mas houve abuso de confiança para um ato sexual”, afirmou.
O ministro destacou que a conotação sexual, para determinadas faixas etárias, é uma questão de abuso de poder e de confiança, pois, embora uma criança de cinco anos não entenda a questão sexual, os reflexos serão sentidos na adolescência, dificultando que tenham confiança em outras pessoas no momento de se relacionar.
O julgamento foi retomado na sessão desta terça-feira (1º) com o voto-vista do ministro Luiz Fux pela manutenção da sentença de primeiro grau, por entender que o ato configura o delito de estupro de vulnerável. A ministra Rosa Weber votou no mesmo sentido.
Beijo lascivo
Na sessão de dezembro, o relator do HC, ministro Marco Aurélio, votou pela manutenção da decisão do TJ-SP, pois considera que o chamado beijo lascivo não configura estupro. O ministro observou que, anteriormente, havia dois tipos penais – estupro e atentado violento ao pudor – com penas diversas. Mas, que com a alteração no Código Penal introduzida pela Lei 12.015/2009, as duas condutas foram reunidas no conceito mais abrangente de estupro de vulnerável, estipulando pena de 8 a 15 anos de reclusão para o delito de constranger menor de 14 anos a conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso diverso. Segundo ele, a conduta do réu restringiu-se à consumação de beijo lascivo, o que não se equipara à penetração ou ao contato direto com a genitália da vítima, situações em que o constrangimento é maior e a submissão à vontade do agressor é total.
O ministro Luís Roberto Barroso também considerou a pena excessiva e votou pela concessão do HC para desclassificar a conduta e determinar que o juízo de primeira instância emita nova sentença com base no artigo 215-A do CP (praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro), cuja pena varia de um a cinco anos de reclusão. Processos relacionados HC 134591.
Uma das questões mais debatidas no âmbito dos crimes sexuais é o conceito do denominado “ato libidinoso”. Ao contrário da conjunção carnal, que pode ser definida como a cópula vaginal característica da relação sexual entre sexos opostos, o ato libidinoso tem definição muito mais ampla.
A doutrina, de modo geral, define o ato libidinoso como aquele de cunho erótico praticado para a satisfação da lascívia. Ensina Mirabete, citando Fragoso e Hungria: “Define Fragoso o ato libidinoso como ‘toda ação atentatória ao pudor, praticada com proposito lascivo ou luxurioso’. Trata-se, portanto, de ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafogo da concupiscência. Alguns são equivalentes ou sucedâneos da conjunção carnal (coito anal, coito oral, coito interfemora, cunnilingue, anilingue, hetero-masturbação). Outros, não o sendo, contrastam violentamente com a moralidade sexual, tendo por fim a lascívia, a satisfação da libido. Estão incluídos os atos homossexuais como os de uranismo, pederastia, lesbianismo, tribadismo ou safismo. É considerado ato libidinoso o beijo aplicado de modo lascivo ou com fim erótico (RT 534/404). Afirma Hungria que ‘o ato libidinoso tem de ser praticado pela, com ou sobre a vítima coagida’. Isso não quer dizer, porém, que seja indispensável o contato físico, corporal, entre o agente e a ofendida” (Manual de Direito Penal – Parte Especial. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, vol. 2, p. 413).
Ato Libidinoso
A amplitude da expressão “ato libidinoso” sempre provocou sérias controvérsias na prática da justiça criminal. São incontáveis as decisões nas quais os tribunais tiveram de deliberar sobre a ocorrência de crime decorrente de um toque íntimo ou um beijo lascivo, normalmente em situações em que o constrangimento (violência ou ameaça) não era tão evidente. Isto ocorria quando ainda vigorava o tipo autônomo do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP) e continuou ocorrendo após a Lei 12.015/09, que unificou no tipo do estupro a conjunção carnal e os atos libidinosos diversos praticados com violência ou grave ameaça. E a controvérsia se estende ao estupro de vulnerável, cujo tipo penal faz menção à conjunção carnal e a “outro ato libidinoso”.
No que se refere ao estupro de vulnerável, os tribunais têm sido bastante rigorosos. O STJ, por exemplo, já decidiu pela consumação do crime numa situação em que o autor fora surpreendido enquanto contemplava a criança nua em um quarto de motel:
“O delito imputado ao recorrente se encontra em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Cuidando-se de vítima de dez anos de idade, conduzida, ao menos em tese, a motel e obrigada a despir-se diante de adulto que efetuara pagamento para contemplar a menor em sua nudez, parece dispensável a ocorrência de efetivo contato físico para que se tenha por consumado o ato lascivo que configura ofensa à dignidade sexual da menor. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal” (RHC 70.976/MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJe 10/8/2016).
Há pouco tempo, o tribunal julgou recurso contra a condenação de um indivíduo que havia sido surpreendido tocando intimamente, sobre a roupa, o próprio neto de seis anos de idade. Pretendia-se a desclassificação do estupro de vulnerável para a importunação sexual, tipificada no art. 215-A do CP por meio da Lei 13.718/18. Embora não de forma unânime, decidiu-se ser incabível a pretendida desclassificação, com base na jurisprudência da 5ª a da 6ª Turmas, que têm desconsiderado qualquer circunstância que possa relativizar a punição de atos de libidinagem cometidos contra menores de quatorze anos. Não há possibilidade de conferir tratamento menos severo a alguém que pratica contra um menor vulnerável algum ato de conotação sexual, ainda que não corresponda a uma efetiva relação de natureza sexual.
Na decisão, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca ressalvou sua posição pessoal no sentido de que a desclassificação seria possível, pois não se recomenda a equiparação penal de condutas tão díspares quanto o ato propriamente sexual e um beijo ou um toque sobre a roupa. O ministro se referiu ao habeas corpus 134.591, à época pendente de julgamento na 1ª Turma do STF, em que o impetrante havia sido condenado por estupro de vulnerável por beijar lascivamente uma criança de cinco anos de idade, mas pretendia a desclassificação da conduta criminosa para a contravenção do art. 65 da Lei 3.688/41.
Pois bem, o julgamento do habeas corpus foi concluído ontem (01/10/19), e, por maioria, a 1ª Turma do STF denegou a ordem para manter a condenação original.
No voto que já havia proferido, o ministro Luiz Roberto Barroso denegou a ordem pretendida de início, mas a concedeu de ofício para desclassificar a conduta para o art. 215-A, uma punição intermediária entre a insuficiente contravenção e a severa pena do estupro:
“A doutrina sempre criticou a ausência de uma precisa diferenciação na lei das diversas modalidades de ato libidinoso. Por isso mesmo o julgador deve sempre procurar distinguir aquelas condutas mais graves e invasivas daquelas condutas menos reprováveis, preservando assim a razoabilidade e a proporcionalidade da resposta estatal.”
O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, votou para manter a condenação por estupro de vulnerável, tendo em vista que o art. 215-A não foi criado para transformar atos claros de pedofilia em crime mais brando. Foi seguido pelos ministros Luiz Fux e Rosa Weber, os quais, assim como ele, identificaram o abuso de poder no ato de conotação sexual cometido contra a criança de apenas cinco anos de idade e consideraram imprópria a atribuição de crime muito menos grave, que – acrescentamos – foi inserido no Código Penal para lidar com situações de pessoas não vulneráveis submetidas a atos de conotação sexual que, embora não violentos, são repugnantes, mas, antes, eram atípicos