Registro: 2014.0000718526

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0000091-15.2011.8.26.0355, da Comarca de Miracatu, em que é apelante/apelado MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, é apelado ROY ROCHA LEITE, Apelados/Apelantes WILLIAN BORGES PIRES, BRUNO DE SA PROSDOCIMI e ROBESPIERRE MIGNAC NETO.

ACORDAM, em 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento aos recursos. v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores RICARDO TUCUNDUVA (Presidente) e MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA. São Paulo, 6 de novembro de 2014. José Raul Gavião de Almeida RELATOR Voto n.º 20976 -Apelação Criminal nº 0000091-15.2011.8.26.0355

  1. Apelação Criminal Receptação, adulteração de sinal identificador de veículo automotor e formação de quadrilha.
  2. Materialidade demonstrada por auto de prisão em flagrante, autos de apreensão, de avaliação e de entrega da res furtivae, perícia que constatou a supressão da gravação original do número dos chassis dos automóveis e prova oral.
  3. Autoria comprovada pela prova oral coligida.
  4. Recurso ministerial requerendo a condenação do acusado Roy Não acolhimento Prova insuficiente para demonstrar a participação desse acusado nos crimes de receptação, adulteração de sinal identificador e quadrilha.
  5. Formação de quadrilha Não caracterização Associação de apenas 3 réus.
  6. Recurso ministerial requerendo a majoração da pena e a fixação do regime fechado para todos os acusados. Não acolhimento. Sentença que bem estabeleceu as penas, observando o critério da individualização.
  7. Recursos não providos. Vistos etc.

I- Willian Borges Pires, Bruno de Sá Prosdocimi e Robespierre Mignac Neto foram condenados como infratores dos artigos 180, § 1º e 2º, (por cinco vezes em continuidade delitiva) e 311, caput, ambos do trafico de drogas, o primeiro às penas de 7 anos de reclusão no regime semiaberto e 23 dias-multa no valor unitário mínimo, o segundo às penas de 7 anos de reclusão no regime fechado e 23 dias-multa no valor unitário mínimo e o terceiro às penas de 8 anos e 2 meses de reclusão no regime fechado e 26 dias-multa fixados no valor unitário mínimo. O codenunciado Roy Rocha Leite foi absolvido dessas mesmas acusações, com base no artigo artigo 386 lei 3689/41, inciso VII, do Código de Processo Penal e todos os acusados foram absolvidos da prática do delito previsto no artigo 288 do Código Penal, também com fulcro no artigo artigo 386 lei 3689/41, inciso VII, do Código de Processo Penal.

A sentença reconheceu que entre o início do segundo semestre de 2010 e 19 de janeiro de 2011 os acusados Willian Borges Pires, Bruno de Sá Prosdocimi e Robespierre Mignac Neto receberam veículos que sabiam ter origem criminosa e, no “desmanche” clandestino que mantinham no sítio Biguazinho (imóvel pertencente a Roy Rocha Leite) , adulteraram os sinais identificadores desses veículos, desmontaram-nos e passaram a vender as respectivas peças para estabelecimentos comerciais (ferros velhos e borracharias) da cidade de São Paulo e do Vale do Ribeira.

Inconformados com o resultado da causa na primeira instância, o Ministério Público e os réus apelaram (fls. 444 e 457, 460/461). O promotor de justiça requereu a condenação de Roy Rocha Leite, ao argumento de que a prova coligida é suficiente para imputar-lhe a coautoria dos ilícitos descritos na denúncia, a condenação dos quatro acusados pelo crime de quadrilha ou bando, o aumento da pena-base, a imposição do regime fechado para todos os acusados e a prisão processual dos réus (fls. 447/456). A defesa requereu a absolvição dos acusados sob alegação de que a prova amealhada nos autos não autoriza o decreto condenatório (fls. 464/473). Foram apresentadas as contrarrazões (fls. 490/491, 474/484 e 510/516) e a ilustrada Procuradoria de Justiça proferiu parecer no sentido do provimento do apelo ministerial e desprovimento dos recursos defensivos (fls. 519/531). Esse é o relatório que se soma ao da r. sentença de fls. 407/430, prolatada pelo dedicado juiz Eduardo de Lima Galduróz.

II- A materialidade delitiva dos

crimes, não impugnada neste recurso, foi demonstrada pelos boletins de ocorrência (fls.63/78), autos de apreensão, de avaliação e de entrega de peças de veículos, máquinas e ferramentas destinadas ao desmonte de automóveis (tais como chaves de boca, chaves de fenda, alicates e serra do tipo Maquita) e um veículo Gol placas DGV 4853 (fls.50/53), pela prova pericial, que constatou a supressão de sinais identificadores dos veículos “desmanchados” (fls. 136/180, 198/201 e 388/392) e pela prova oral.

No que concerne à existência da receptação, observe-se inicialmente que foi apreendida a res furtivae (automóveis e peças de carros furtados) em sítio ocupado pelos réus William, Bruno e Robespierre e de propriedade do réu Roy, onde também havia instrumental necessário ao desmonte do veículo. Note-se que a origem criminosa dos bens foi demonstrada pela prova oral e registros policiais.

III- Dos interrogatórios dos réus

Bruno e Robespierre depreende-se que admitiram em juízo a conduta de desmontar carros, de remover sinais identificadores da origem dos bens e de vender as peças (partes dos automóveis). A seu turno, a tese por eles sustentada, de que não sabiam da origem criminosa dos bens (disseram que compraram os carros a preço baixo porque tinham multas e documentação irregular) não encontra suficiente prova nos autos.

A posse dos veículos furtados, a excepcionalidade da conduta de ocultamente desmanchá-los para vender separadamente suas peças, a ausência de demonstração (pelos réus) de que a posse foi obtida (ao menos aparentemente) licitamente, ou de boa fé, são suficientes para atribuir a esses dois acusados o crime de receptação dolosa.

IV – Não obstante o acusado Willian, no que é acompanhado pelos réus Bruno e Robespierre, negasse que estava no sítio onde o desmonte de veículos era realizada para participar da empreitada criminosa de Bruno e Robespierre, seu envolvimento ficou demonstrado.

Com efeito, ao apresentar versão fática que se revelou inverídica (disse que só foi o intermediário entre Roy, proprietário do imóvel, e os corréus Bruno e Robespierre, supostos locatários do sítio, e que só esteve no local com Bruno e Robespierre quando foi buscar um jeep de Roy, ocasião em que a polícia o prendeu) favoreceu a tese acusatória.

A regra insculpida no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal (“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”) assegura ao acusado o direito ao silêncio, que tem dupla faceta. Garante que o interrogando não seja forçado a pronunciar-se afastando definitivamente a prática da obtenção de informação contra a vontade de quem responde criminalmente em persecução penal e obsta a valoração prejudicial ao réu do exercício desse direito de calar-se. Houvesse a possibilidade de extrair prejuízo à defesa pela escolha do permanecer silente no interrogatório, essa preferência não caracterizaria um direito, mas teria a natureza jurídica de mera faculdade. Uma vez optado por apresentar versão sobre os fatos, todavia, o interrogatório passa a integrar o conjunto probatório e, consequentemente, fica sujeito à valoração, seja benéfica ou maléfica aos interesses da defesa. Em outras palavras, a regra constitucional do respeito ao silêncio deixa de ter relevância com o efetivo exercício da autodefesa, do direito de ser ouvido pelo juiz sem interposta pessoa. A preferência do acusado pelo pronunciamento em interrogatório acarreta a obrigação do magistrado de ouvi-lo e de valorar a versão que apresentar, beneficiando-o ou prejudicando-o, na medida em que a palavra do acusado, como as demais colhidas em juízo, não está imune ao princípio da persuasão racional.

Assim, se o réu optar por falar, no interrogatório, deverá medir suas palavras, porque elas poderão ser utilizadas também em seu desfavor. É o que ocorre na hipótese do acusado apresentar versão contrária ao convincente conjunto probatório. Identificado que faltou com a verdade, esse comportamento e o teor da inexatidão podem ser considerados pelo julgador, pois não existe direito à mentira, como não há a correspondente obrigação de ignorar a inverdade (Apelação Criminal nº 0004613-71.2005.8.26.0266).

E a versão de Willian revelou-se inverídica com o depoimento da testemunha Laís, vizinha do sítio onde o desfazimento dos veículos ocorria, que confirmou que os quatro denunciados estiveram juntos no sítio, que Willian esteve no local mais de uma vez e que foi Willian quem a advertira que não era para terceiros entrarem no imóvel de Roy.

Ademais, os policiais Denilson de Lara (fls. 269/280) e Elder Aparecido Vergílio (fls. 281/289) esclareceram que, ao investigarem denúncias anônimas de movimentação suspeita de veículos no Sítio Biguazinho (de que os carros que lá entravam não mais saíam), foram ao local e lá encontraram, na área externa, um veículo Gol e várias peças de automóveis jogadas no chão. Afirmaram, também, que o acusado Bruno foi surpreendido no interior da residência e que os coacusados Willian e Robespierre, ao perceberem a aproximação da polícia, empreenderam fuga, mas foram capturados em seguida. Disseram ainda que, além do veículo Gol e das peças com os sinais identificadores suprimidos encontraram máquinas e diversas ferramentas utilizadas no desmanche dos veículos e que, naquele momento e diante das evidências, Bruno, Roberspierre e Willian confessaram ter praticado os crimes de receptação e adulteração de sinais identificadores.

V- No que concerne ao acusado Roy, as testemunhas policiais não o viram no local do desmanche e não trouxeram prova alguma de seu envolvimento na atividade criminosa. E a testemunha de acusação Laís, ouvida duas vezes em juízo, afirmou que Roy lhe disse ter arrendado o imóvel aos corréus e que desde então Roy não mais retornou ao sítio. Laís disse, ainda, que “tem certeza” que Roy não está envolvido na atividade criminosa.

As demais testemunhas, arroladas pela defesa, igualmente depõem em favor da não participação de Roy nos crimes a ele imputados na denúncia (José Antônio, Adilson e Valdenor).

Assim, o fato de o imóvel pertencer a Roy e o de Willian ter para ele trabalhado são insuficientes para condená-lo. Nessa linha, aliás, precisa foi a sentença a fls. 420/421: “No que diz respeito, entretanto, ao réu Roy , a absolvição é medida de melhor prudência. É de se observar que o réu não se encontrava presente no sítio quando da prisão em flagrante dos demais. Não foi surpreendido, portanto, em posse de qualquer instrumento relacionado aos delitos. A testemunha ouvida a fls. 290/302 e 403/404 disse que somente o viu em companhia dos demais por ocasião da entrega das chaves no sítio. Naquela ocasião, Roy informou apenas que iria arrendar o sítio aos demais réus, que ali iriam trabalhar. Desde então, a testemunha disse não mais ter visto o acusado no local dos fatos. Acrescentou que o acusado costumava ir pouco ao sítio. A prova colhida, pois, aponta no sentido de que, desde o início das atividades criminosas, Roynão mais retornou ao sítio dos acontecimentos. Significativo, ainda, que nenhum dos corréus envolveu Roy na prática do delito. Todos eles, mesmo na fase inquisitorial, disseram apenas que Roy , apresentado por Willian , alugou-lhes o sítio. Em juízo, garantiram que Roy não tinha conhecimento da atividade ilícita ali desenvolvida. Embora o fato de ser dono do sítio e do Jipe que ali se encontrava

lance sobre o réu suspeitas de participação, certo é que tais elementos indiciários não se viram acompanhar de nenhuma prova concreta, senão menções indiretas ao testemunho de pessoas jamais identificadas ou ouvidas formalmente. Assim, o só-fato de ser proprietário do sítio em que os fatos se deram não autoriza a condenação, sob pena de se instaurar indesejável responsabilidade penal objetiva. As provas, enfim, são de todo insuficientes à procedência da ação com relação à Roy ”.

VI – A absolvição do réu Roy obsta a condenação pelo crime de quadrilha, pois não há notícia nos autos da participação de terceiro na atividade criminosa.

VII – A alegação defensiva de que a receptação não se consumou porque os veículos desmontados não foram vendidos não comporta acolhida porque esse crime é ilícito de ação múltipla, que pode ser perpetrado com condutas distintas (tipo penal misto alternativo), bastando que haja conduta que se ajuste a um dos verbos do tipo penal.

VIII – No que concerne à qualificação da receptação, há notícia nos autos de que as peças dos veículos desmontados eram comercializadas. Pouco importa se o ato mercantil ocorria em local diverso daquele em que se procedia ao desmonte dos carros, assim como descabe indagação acerca do ferro velho em que as peças eram comercializadas, porque o § 2º do artigo 180 equipara à atividade comercial qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em residência.

Assim, não há reparo a ser feito na tipificação constante da sentença.

IX – No que concerne à adulteração de sinal identificador do veículo, caracteriza-se o crime com a violação à fé pública, no que tange à propriedade e ao licenciamento ou registro de veículos automotores.

No caso dos autos os réus suprimiram parcial ou totalmente os números identificadores das peças, o que acarreta a adequação ao tipo penal.

X – As penas (quantum e regime) foram fixadas dentro dos parâmetros legais, com razoabilidade e observado o critério de individualização. Por isso e porque também nesse tópico a motivação da sentença não ficou abalada pelos inconformismos, deve ser mantida pelos próprios fundamentos: “Primeiro no que diz respeito ao delito de receptação qualificada. Embora as circunstâncias do crime revistam-se de invulgar intensidade, mormente pela organização e volume de bens de origem espúria movimentados, certo é que o número de bens apreendidos já será levado em consideração para majoração da pena, na última fase da dosimetria. Assim , para Willian , que é primário (fls. 36, apenso próprio), fixo a pena-base no mínimo, três anos de reclusão. Bruno receberá o mesmo tratamento, eis que, embora tenha condenação por crime de roubo (fls. 33, apenso próprio), trata-se de processo ainda em curso, que não pode ser utilizado para recrudescer a pena-base, nos termos da Súmula de nº 444, do egrégio STJ. Robes pierre , por seu turno, já possui condenação definitiva anterior (fls. 35, apenso próprio), que será levada em consideração em fase posterior, para fins de reincidência. Assim, para todos, fixo a base em três anos de reclusão . Na segunda fase de fixação da reprimenda, verifico que Robes pierre é reincidente específico, conforme certidão de fls. 35, apenso próprio. Assim, elevo sua pena em um sexto, perfazendo-se o total de três anos e seis meses de reclusão. As confissões de Bruno  Robespierre não podem ser consideradas para fins de atenuação da pena. Isto porque, embora tenham admitido a exploração do desmanche de veículos, sempre defenderam desconhecer a origem ilícita dos bens apreendidos, buscando, assim, esquivar-se da responsabilidade por seus atos. Trata-se, pois, de confissão qualificada, que não se presta a caracterizar circunstância atenuante. Na última fase de fixação da reprimenda, observo que foram cinco os delitos de receptação comprovados (três blocos de moto0r, um veículo VW/Gol e um veículo GM/Corsa, já retalhado), em continuidade delitiva. Aplicando-se, pois, a regra do artigo 71, dotrafico de drogas, considerando a quantidade de crimes, tenho como justo o aumento da pena em um terço, perfazendo-se, para Bruno e Willian , o total de quatro anos de reclusão e, para Robes pierre , o montante de quatro anos e oito meses de reclusão. A pena de multa, de aplicação bifásica, deve também ser aumentada em um terço para todos os réus e ali mantida, dada a ausência de informes seguros quanto às suas situações financeiras, perfazendo-se o total de 13 dias-multa, a unidade estabelecida no mínimo. Passo à dosagem relativa ao delito previsto no artigo 311, dotrafico de drogas. Não há circunstâncias ou consequências extraordinárias, eis que, como consta na fundamentação, identificou-se a supressão da numeração de apenas um bloco do motor. Assim, fixo a pena-base dos três réus em 03 anos de reclusão, que se torna definitiva para Willian e Bruno . Na segunda fase, pela reincidência, elevo a pena-base de Robes pierre em um sexto, perfazendo-se o total de 03 anos e 06 meses de reclusão, que também torno definitiva. Seguindo os mesmos critérios, aplico a pecuniária em 13 dias-multa para Robes pierre e 10 dias-multa para Willian e Bruno , no mínimo legal. Havendo concurso material de delitos entre a receptação e a supressão de sinal identificador de veículo, eis que, com condutas distintas, foram atingidos bens jurídicos diversos, temos como necessária a soma das penas impostas, nos termos do artigo 69, do trafico de drogas. Assim, ficam as penas de Willian e Bruno definidas em sete anos de reclusão, bem como ao pagamento de 23 dias-multa e a de Robes pierre em oito anos e dois meses de reclusão, e pagamento de 26 dias-multa. Com relação ao regime inicial de cumprimento, pondero tratar-se de crimes de especial gravidade, uma vez que os réus, comprovadamente, organizaram no local verdadeiro desmanche de veículos provenientes de delitos (notadamente, o de furto), sendo que retiravam suas peças, suprimindo os sinais identificadores, e vendiam a terceiros, contribuindo sobremaneira para o fomento da criminalidade, especialmente em se tratando de delitos patrimoniais. Assim, para Robespierre e para Bruno , fixo o regime fechado como inicial de cumprimento, observando-se que a escolha do regime também se fundamenta, com relação ao primeiro, pelo fato de ser reincidente específico e pela quantidade de pena imposta, superior a oito anos. Com relação a Willian , entendo por bem adotar o semiaberto como inicial de cumprimento, e isto por se tratar do único, dentre os quatro réus, sem nenhum envolvimento anterior com a justiça, de forma que, no que tange a ele, entendo suficiente o início do desconto em regime menos gravoso, como autoriza, inclusive, o artigo 33, parágrafo 2º, alínea b, do Código Penal”.

Nada precisa ser acrescido.

Ante o exposto, nega-se provimento aos recursos.

JOSÉ RAUL GAVIÃO DE ALMEIDA

RELATOR