Hassan Saada, paciente neste habeas corpus, estaria sofrendo coação ilegal em decorrência de decisão proferida por Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que indeferiu a liminar no HC n. 0257511-08.2016.8.19.0000.
Nesta Corte Superior, os impetrantes buscam a superação da Súmula n. 691 do STF, sob o argumento de ilegalidade manifesta da prisão temporária do paciente, decretada para apurar a ocorrência de crimes de estupro. Ressaltam que o paciente “é um jovem cidadão marroquino, de apenas 22 anos de idade, atleta olímpico, lutador de boxe, mundialmente conhecido pelas suas conquistas esportivas” (fl. 2).
Afirmam que não estariam demonstrados os requisitos para a decretação da prisão temporária do acusado, em especial a autoria ou participação do indiciado no delito a ele imputado e a sua imprescindibilidade para as investigações e o risco de fuga.
Sustentam inexistir suficientes indícios de autoria e de materialidade dos delitos imputados ao paciente, por considerarem que os depoimentos das supostas vítimas “são absolutamente conflitantes em um ponto crucial, que guarda relação com a sequência dos dois supostos crimes de estupro” (fl. 12).
Alegam, ainda, que “não há qualquer indicativo de que a sua liberdade constitui um risco concreto para as investigações ou para a instrução criminal” (fl. 17), mormente “porque o irretocável histórico de vida do ora paciente, famoso atleta da delegação de boxe do Marrocos, que nunca viu o seu nome envolvido em qualquer incidente de natureza criminosa, constitui a maior garantia de que a sua liberdade não oferece um risco real a quem quer que seja” (fl. 18).
Asserem que há medidas cautelares diversas da prisão que podem impedir que o paciente venha a se evadir do país, tais como a retenção do seu passaporte e a proibição de se ausentar da comarca sem autorização judicial. Requerem, liminarmente, seja o paciente colocado em liberdade, mesmo que, para tanto, sejam impostas outras medidas cautelares.
Decido.
Se a admissão de habeas corpus, quando substitui recurso próprio, não tem sido tolerada por esta Corte, com muito mais razão será a inviabilidade de writ que se volta contra decisão que indefere pedido de liminar na origem. Incide, portanto, a Súmula n. 691 do Supremo Tribunal Federal, também observada por este Tribunal Superior, cuja suplantação somente é possível quando a percepção de ilegalidade seja manifesta e inconteste, o que ocorre na hipótese vertente.
De início, saliento que as condições pessoais favoráveis ou mesmo o fato de se tratar de atleta reconhecido mundialmente não impedem a decretação de qualquer providência de natureza cautelar em relação ao paciente. Não importa se nacional ou estrangeiro, famoso ou desconhecido; releva analisar se sua segregação cautelar é amparada em lei e se é necessária, à luz dos dadosconstantes dos autos.
Também impende esclarecer, prontamente, que não há ainda acusação formalizada, e muito menos juízo definitivo de mérito, contra o paciente, de modo que qualquer decisão tomada nessa fase da persecução penal labora em juízo de verossimilhança e não de certeza.
Certo é que, ao intuito de aferir a legalidade e/ou necessidade da prisão temporária objurgada neste writ, noto, de plano, que a autoridade policial representou pela decretação da prisão temporária do paciente ou pela imposição de medidas cautelares diversas da prisão – entrega do passaporte e proibição de se ausentar da cidade do Rio de Janeiro –, ante a suposta prática de dois crimes de estupro contra duas mulheres que exerciam o emprego de camareiras na Vila Olímpica, fato que deu origem ao Inquérito Policial n. 042-05392/2016, em tramitação no Juizado do Torcedor e dos Grandes Eventos da Comarca do Rio de Janeiro – RJ.
A Juíza de primeiro grau decretou a prisão temporária do acusado, em 4/8/2016, sob a seguinte motivação (fls. 66-71, grifei): Trata-se de inquérito policial para investigação do delito capitulado no art. 213 do Código Penal contra P.S.C. e V. C.de P.G. Às fls. 03/04 a autoridade de polícia judiciária narra que ambas as vítimas foram contratadas para trabalhar como camareiras da Vila Olímpica.
Foi relatado que no dia 02/08/2016, por volta das 10:00 horas, realizavam limpeza no apartamento que serve a delegação do Marrocos na Vila Olímpica. Que V. teria sido abordada pelo indiciado. Este entrou no apartamento, pediu para tirar uma foto com a mesma, perguntando se esta possuía perfil em rede social.
Ao chegar a segunda vítima, o indiciado fez o mesmo, ao final, pedindo um beijo a V. Que ambas se dirigiram a outro quarto para efetuar limpeza, quando o indiciado entrou no cômodo, segurou P. pelo braço, encostou-a na parede com a intenção de beijá-la e aproximou seu corpo, apertando sua perna. Logo após atacou V., passando a mão em seu braço, chegando a apertar seu seio, fazendo ainda sinais de masturbação e de dinheiro.
As vítimas então procuraram sua líder L., e narraram o ocorrido. É necessária a demonstração da utilidade da medida de segregação, a qual resta induvidosa. Para a decretação da prisão temporária, urge a comprovação mínima da existência do fumus comissi delicti (fumaça da existência de um delito) e do periculum libertatis (perigo na liberdade do acusado). O fumus comissi delicti, é compreendido como os indícios de autoria e a prova da materialidade e o periculum libertatis pode ser definido como os fundamentos presentes no inciso III do art. 1º da lei 7960/89.
O periculum deflui da comprovação da existência de uma das situações de que tratam os incisos I ou II. No caso em tela, há evidentes indícios de autoria e prova de materialidade contra o indiciado, consubstanciado nos depoimentos das vítimas e da supervisora, ainda, dos reconhecimentos realizados junto à autoridade policial. O mesmo foi reconhecido pelas vítimas, as quais, detalhada e especificamente, narraram os atos libidinosos praticados pelo indiciado, que evidenciam a total certeza de impunidade a cometer um grave crime contra a dignidade sexual em outro país, contra duas vitimas, inobservando as leis locais.
Além disso, a supervisora das mesmas presta depoimento reconhecendo-o e atestando a versão das vítimas. Portanto, o requisito encontra-se vastamente comprovado. Determina o art. 213 do CP: Indícios há da grave ameaça perpetrada por atleta de delegação olímpica contra mulheres humildes que apenas pretendiam desempenhar seu trabalho dignamente como camareiras.
É inaceitável que qualquer mulher, ainda mais no exercício de sua função, seja submetida a situação tão constrangedora e indigna. É inacreditável que um atleta, que deveria vir ao país para passar uma mensagem de espirito olímpico, haja com total desrespeitocom quem o acolhe, cometendo atos gravíssimos e repudiados em qualquer lugar do mundo.
Da mesma forma se percebe o periculum libertatis no caso em tela. É necessária a prisão do indiciado à complementação das investigações, mormente porque livre o mesmo pode influenciar em diligências necessárias, e, até reincidir na prática de violência de gênero, eis que dois já são os fatos. Ademais, outras profissionais em situações análogas podem estar expostas a mesma violência. Tais fatores justificam a medida e a torna essencial para a segurança de outras pessoas.
Inobstante, saliente-se que o mesmo não possui domicílio fixo no país, eis que atleta de delegação olímpica estrangeira, o que dá flagrante dimensão do risco de sua evasão frustrando a eventual aplicação da lei penal. É público e notório que o indiciado permanecerá pouquíssimo tempo no país, retornando ao término dos jogos de imediato.
Devemos recordar que o dever ao cumprimento das leis brasileiras é de absolutamente todos que aqui estejam, brasileiros ou não. Além disso, e pelo fato acima, o risco de evasão é real e iminente. (Nomes das vítimas identificados por iniciais, para preservação de suas identidades).
Impetrou-se o habeas corpus originário, cuja liminar foi denegada pelo Desembargador relator, in verbis (fls. 24-25, destaquei): No caso vertente, o crime em apuração é de estupro, restando satisfeito o inciso III, letra “f”, porquanto há nos autos indícios suficientes da autoria, mormente em razão dos depoimentos já prestados pelas vítimas perante a autoridade policial. A prisão temporária foi decretada em decisão devidamente fundamentada, porquanto examinou de maneira expressa e motivada os requisitos autorizadores da segregação cautelar fumus comissi delicti e o pericülum libertatis – além de se tratar de crime hediondo.
Na espécie, o fumus comissi delicti está consolidado na presença dos indícios de autoria e prova da materialidade, consubstanciado no próprio relato das vítimas. A manutenção da segregação cautelar do indiciado mostra-se necessária ainda para o aprofundamento das investigações criminais e para a proteção da testemunha que prestou depoimento e ainda será ouvida em juízo, inclusive a oitiva das próprias vítimas.
In casu, o constrangimento não se mostra desarrazoado, conforme retratado na inicial do writ, estando a exigir um exame mais detalhado dos elementos de convicção carreados aos autos, o que ocorrerá por ocasião do julgamento definitivo da presente medida judicial. O art. 1º da Lei n. 7.960/1989 evidencia que o objetivo primordial da prisão temporária é o de acautelar o inquérito policial, procedimento administrativo voltado a esclarecer o fato criminoso, a reunir meios informativos que possam habilitar o titular da ação penal a formar sua opinio delicti e, por outra angulação, a servir de lastro à acusação.
De fato, a exigência cautelar a justificar a medida reside na constatação de que a prisão é “imprescindível para as investigações do inquérito policial” (inciso I do art. 1º da Lei n. 7.960/1989). Não se trata, destaque-se, de conveniência ou comodidade da cautela para o bom andamento do inquérito policial, mas de verdadeira necessidade imperiosa da medida, aferida caso a caso. Na hipótese, não logrei identificar os motivos pelos quais a presença do paciente, recolhido a título de prisão temporária, se faz necessária para garantir o êxito das investigações, mas percebi a referência judicial a motivos que poderiam autorizar um decreto de prisão preventiva (art. 312 do CPP).
Mais ainda, não identifiquei análise, posto que mínima, da insuficiência e inidoneidade de medidas cautelares diversas da prisão, para atender aos fins de proteção dos interesses declinados na decisão, conforme aventado pela própria autoridade policial que formulou a representação. Aduziu a autoridade judiciária que o paciente “não possui domicílio fixo no país, eis que atleta de delegação olímpica estrangeira, o que dá flagrante dimensão do risco de sua evasão frustrando a eventual aplicação da lei penal. É público e notório que o indiciado permanecerá pouquíssimo tempo no país, retornando ao término dos jogos de imediato.”
Sim, o atleta ora paciente veio ao Brasil para participar dos Jogos Olímpicos e provavelmente deixará o país assim que cumprir sua participação ou, quando muito, quando encerrados os jogos. Mas em nenhum momento cogitou Sua Excelência de impor ao paciente medida menos gravosa do que a prisão temporária e com igual eficácia – a retenção do passaporte e a proibição de ausentar-se da comarca.
De outro lado, a juíza singular justificou a prisão do paciente para a “complementação das investigações, mormente porque livre o mesmo pode influenciar em diligências necessárias, e, até reincidir na prática de violência de gênero, eis que dois já são os fatos. Ademais, outras profissionais em situações análogas podem estar expostas a mesma violência. Tais fatores justificam a medida e a torna essencial para a segurança de outras pessoas.”
Também sob tal aspecto o decreto é carente de suficiente fundamentação, porque prevê, sem explicitar as suas razões (que não a de já haver investido contra duas camareiras), que atos delitivos similares se repetirão, não somente contra as ofendidas como contra outras profissionais que trabalham na Vila Olímpica. Decerto que tal prognóstico não é desarrazoado se nenhuma providência for imposta ao paciente, mas não houve indicação de que sua periculosidade seria tão exacerbada a ponto de não poder ser ilidida ou controlada por outras medidas cautelares idôneas e suficientes à proteção das vítimas e de terceiros, tais quais a proibição de delas se aproximar e também a proibição de frequentar as instalações da Vila Olímpica.
A prisão cautelar de qualquer espécie – preventiva ou temporária – pode conviver com a presunção de não culpabilidade. Sua permissão, na forma e nos limites indicados em lei, é condição de sobrevivência de uma sociedade pacífica e ordeira, organizada sob um Estado de Direito. Mas a prisão provisória é mecanismo excepcional de proteção dos interesses que eventualmente estejam sob risco durante a atividade persecutória estatal. A regra é a liberdade; a prisão é exceção. Tal é a concepção que prevalece nos ordenamentos processuais modernos – inclusive o nosso –, bem como em tratados e convenções internacionais.
Exemplo nos dá o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado na cidade de Nova York, em 1966, ao estabelecer, em seu artigo 9º, item 3, que “… A detenção prisional de pessoas aguardando julgamento não deve ser regra geral, mas a sua libertação pode ser subordinada a garantir que assegurem a presença do interessado no julgamento em qualquer outra fase do processo e, se for caso disso, para execução da sentença.” No mesmo sentido se alinham as Regras de Tóquio, ou Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não-Privativas de Liberdade, nomeadamente o artigo 6.1, onde se prevê que: “A prisão preventiva deve ser uma medida de último recurso nos procedimentos penais, tendo devidamente em conta o inquérito sobre a presumível infração e a proteção da sociedade e da vítima.”
A consagração do princípio da excepcionalidade da prisão preventiva fica mais evidente com a nova redação dada aos artigos que compõem o Título IX do Código de Processo Penal, nos quais se evidencia com mais clareza a exigência de que a prisão preventiva – e o argumento também vale para a prisão temporária – por ser a medida mais extremada (extrema ratio) entre todas as cautelares pessoais, só deve ser imposta ao indiciado ou acusado quando outras medidas, agora elencadas no art. 319 do CPP, se mostrarem inadequadas ou insuficientes às exigências cautelares.
Confira-se o que dizem o art. 282, tanto em seu § 4º (que fala em decretar a prisão preventiva “em último caso”), quanto em seu § 6º (que fala da decretação da preventiva quando não cabível sua substituição por outra medida cautelar); também se pode extrair a característica da excepcionalidade da prisão preventiva do inciso II do novo art. 310 do CPP, que condiciona a conversão da prisão em flagrante em preventiva à constatação de que são inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão. Nesse sentido também se alinhou o Conselho Nacional de Justiça, ao estabelecer “Diretrizes para a aplicação e o acompanhamento das medidas cautelares diversas da prisão”, conforme o Protocolo 1 da Resolução n. 213 de 15/12/2015.
À vista dessas considerações, defiro a liminar para substituir a prisão temporária do paciente, com fulcro nos arts. 319, II, III e IV, e 320 do CPP, sem prejuízo de outras medidas que o prudente arbítrio do Juiz natural da causa indicar cabíveis e adequadas, pelas seguintes cautelas: a) proibição de frequentar a Vila Olímpica; b) proibição de se aproximar das vítimas e testemunhas do fato; c) proibição de se ausentar da Comarca do Rio de Janeiro – RJ, sem prévia autorização judicial, devendo informar, no prazo de 24 horas, o endereço em que poderá ser localizado e d) retenção do passaporte, mediante entrega ao Juízo de origem.
Comunique-se, com urgência, o inteiro teor desta decisão ao Juízo de primeiro grau e à Corte estadual, solicitando informações. Alerte-se ao paciente que a violação das medidas cautelares importará a decretação de sua prisão preventiva, que também poderá ser aplicada se sobrevier situação que configure a exigência da cautelar mais gravosa. Decline o paciente, antes de ser solto, o local onde poderá ser encontrado para atos futuros do inquérito policial e de eventual ação penal.
Em tempo, corrija-se a autuação, a fim de constar o nome do paciente por extenso, tendo em vista que, na espécie, a previsão de segredo de justiça não se presta à ocultação da identidade do réu. Cumpridas as demais determinações, encaminhem-se os autos ao Ministério Público Federal para manifestação. Brasília (DF), 10 de agosto de 2016. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ .
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