CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRISÃO EM FLAGRANTE A LUZ DO INCISO II DO ARTIGO 7º DA LEI 8137/90 E O ABUSO DE AUTORIDADE

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Antes de adentrar no tema é necessário discorrer que a referida norma vem sendo aplicada peremptoriamente ao comerciante ou empresário pela prática de crimes contra as relações de consumo. Portanto, necessário se faz entender um pouco mais sobre a figura do empresário no ordenamento jurídico vigente.

A C.F em seu inciso XIII artigo 5º diz que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas às qualificações profissionais que a lei estabelecer.

O artigo 966 do C.C. estabelece que Empresário é todo aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada, para produção ou circulação de bens e serviços. Empresa é toda atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços exercida por empresário, em caráter profissional através de complexo de bens.

A C.F também contempla que o direito empresarial é um princípio fundamental da ordem econômica, fundada na valoração do trabalho e na livre iniciativa, desde que observado os principais incisos, os quais são objetos deste tema, II e V do artigo 170.

No entanto, parece que na prática, o simples fato de ser comerciante, principalmente, na região central da Capital de São Paulo deixou de ser um exercício regular de direito, passando a ser crime contra as relações de consumo.

Não existe mais regra todo e qualquer produto exposto à venda é motivo para submeter o dirigente do estabelecimento, sobre prisão em flagrante pelo crime disposto no inciso II da lei 8137/90, que assim dispõe:

Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo: II- vender ou expor à venda, mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial: Pena –detenção, de 2(dois) a 5 (anos), ou multa.   

Desta forma, não são raras as prisões decretadas por investigadores de polícia da Delegacia do Consumidor de São Paulo, trazendo intranquilidade que acometem os “comerciantes de bem”, normalmente sobre a justificativa de que a “os produtos estavam expostos à venda sem especificações e/ou informações na língua portuguesa”, contrariando “pasmem” a legislação civil disposta no artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor.

Não se fala em mercadoria desacompanhada de sua origem fiscal, não se fala em mercadoria contrabandeada ou fruto descaminho, nem mercadoria receptada, ou até mesmo, em mercadoria com prazo de validade vencida, como no caso de alimentos impróprios para o consumo, mas pura e simplesmente, porque a rotulagem de alguns produtos não contem o manual em português, e desta forma, apreende-se as mercadorias, constrange-se os empresários ou comerciantes que via de regra são presos em flagrantes sem as mínimas condições de evitar uma nova prisão, salvo, se fecharem seus estabelecimentos.

Tem-se notícia de prisões em flagrantes de um comerciante da região local que revendia “confetes de papel” sem o manual em português. Ora, é de se perguntar? Confetes são para consumo? Qual o risco que traz para o consumidor a venda de confetes? Qual a necessidade do manual em português?

São essas aberrações que nós levam a interpretar como inegável abuso de autoridade de interesse oculto em prejuízo do empresário.

Ora, não se desconhece que objeto jurídico do tipo penal é proteção da ordem econômica, como um todo, tutelando-se o consumidor. E de igual forma que o sujeito ativo é o comerciante ou o produtor de bens destinados ao consumidor final.

Mas também não se desconhece que os bens destinados ao consumidor em desacordo com as prescrições legais ou que não corresponda à classificação oficial, são matérias penais inacabadas, portanto, necessário-se faz o complemento do tipo da norma penal em branco da mesma qualidade; não se podendo aplicar como complemento geral, normas de conceito, como os artigos 18, § 6º e artigo 31 do CDC.

Além do mais; conforme refere-se Luiz Regis Prado (in Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 186), Nestes casos, exige-se dupla complementação na medida que proíbe a venda ou exposição à venda de mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as “prescrições legais” ou que não corresponda à respectiva “classificação oficial”.

Sendo assim, o comerciante ou o fornecedor de matéria prima tem que conhecer em qual prescrição legal ou classificação oficial ele está submetido e qual regra ele está desobedecendo para ser preso em flagrante por crime contra as relações de consumo.

Como cediço, não vale para o presente caso, conceitos genéricos que são exclusivamente para fins comerciais e civis, como é o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor, por que este não se presta á integrar a norma prevista no artigo 7º, inciso II, da Lei 8137/90.

Data venia, são normas homogêneas em sentido lato, aquelas em que devem buscar como complemento a mesma fonte ou órgão, in casu, em pior das hipóteses normativos próprios que retratam a prescrição legal pertinente a cada produto exposto á venda e sua classificação oficial de mercado.

Sendo assim, nem toda a prescrição legal ou a classificação oficial dos produtos no Brasil exigem manual em português, principalmente, quando se trata de produtos importados produzidos ou fabricados no exterior e não são poucos.

Veja-se que para se introduzir essas mercadorias no Brasil, as importações devem seguir rigorosamente o que dispõe a portaria do SECEX de n.º 10, de 24 de maio de 2010.

Segundo o anexo “C” da referida portaria estão relacionados os produtos sujeitos a condições ou procedimentos especiais no licenciamento automático ou não automático que inclui obviamente os interesses do Consumidor.

Neste anexo, a exemplo, destaca-se o tratamento dado às importações de Brinquedos (sujeitas à apresentação do Certificado de Conformidade, referente ao lote de brinquedos objeto da importação, confirmando a certificação e a realização dos ensaios previstos pelo INMETRO).

São vários os Órgãos Anuentes na Importação, portanto, para a fiscalização e permissão da entrada de produtos para venda no território aduaneiro brasileiro, operam no Brasil diversos órgãos de controle, cuja função precípua é analisar e autorizar a importação do bem por meio da emissão de licença de Importação no Siscomex os quais devem ser cumpridas tanto pelo importador, industrial ou fabricante e observadas sobre pena de negligência pelos comerciantes locais antes de serem postas a venda.

Cada órgão realiza sua análise independentemente considerando todos os aspectos pertinentes a cada tipo de produto disposto no mercado e pode se dizer que são vários órgãos atuantes, como exemplo, ANVISA, MAPA, IBAMA, INMETRO, SUFRAMA E CNPq.

Além do mais, no próprio Decreto aduaneiros da Receita Federal e licenciamento do SESCOMEX, artigo 557 do Decreto 6759 de 5 de Fevereiro de 2009 dispõe que os idiomas oficiais referentes a este acordo são o inglês, o francês e o espanhol.

Portanto, três idiomas diferentes autorizadas pelos órgãos que fiscalizam diretamente os produtos que são importados e postos em circulação no mercado.

Essa insegurança jurídica é própria da lei de crimes contra as relações de consumo, que alinhada ao abuso de autoridade, alertou-se, Agência Nacional de Vigilância Sanitária no que tange á produtos de Higiene pessoal e cosméticos a publicarem oficialmente em seu próprio site que os produtos relacionados com a sigla INCI (Nomenclatura Internacional de Ingredientes Cosméticos), em recipientes escritas em inglês, não ofendem em nada o Código de Defesa do Consumidor) pois tratam de siglas internacionalmente utilizadas em produtos cosméticos, reconhecida e adotada mundialmente.

Adoção da nomenclatura internacional nos recipientes dos produtos de cosméticos não é nenhuma novidade, a exemplo; para os alimentos o Codex Alimentarius estabelece a utilização de uma codificação para os aditivos alimentares, o Color Index para os corantes e a nomenclatura Linné para as substâncias de origem vegetal.

Apesar de ser; para os Agentes da Delegacia do Consumidor; os produtos cosméticos com invólucros em língua estrangeira seria crime tipificado no inciso II do artigo 7º da lei 8137/90, como apoio pericial complementar do Instituto de Criminalística ao qual certamente discorreria que os produtos não atendem a regra disposta no artigo 31 do CDC, pois, a mesma estabelece que “a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam a saúde e segurança dos consumidores”.

Alinhado naquilo que esclareceu a Anvisa, seguindo como exemplo; para contrapor a prisão em flagrante poderíamos ainda se socorrer do Art. 93 do Decreto n.º 79.0944/1977 que estabelece que “Os rótulos, etiquetas, bulas e demais impressos dos medicamentos, cosméticos que contenham uma substância ativa cuja dosagem deve conformar-se com os limites estabelecidos e os desinfetantes cujo agente ativo deva ser citado pelo nome químico e sua concentração deverão ser escritos em vernáculo, conterão as indicações das substâncias da fórmula, com os componentes especificados pelos nomes técnicos correntes e as quantidades consignadas pelo sistema métrico decimal ou pelas unidade internacionais” ou seja, o recipiente com nomes técnicos, em siglas, internacionais garantidos pelas legislação oferecem mais segurança ao consumidores do que a sua própria tradução em língua portuguesa.

Assim, com o devido respeito às fiscalizações e os flagrantes operados normalmente pela Delegacia do Consumidor do Estado de São Paulo, não passam de arbitrariedades e abusos que submetem os comerciantes a constrangimento, num verdadeiro confisco ilegítimo de bens que nem de longe e nem de perto se configura flagrante de ilícito, nem mesmo na modalidade culposa, pois ainda que nos invólucros não se ostente a língua portuguesa, não nos permite por si só a responsabilização criminal do comerciante, sob pena de uma inadmissível punição objetiva.

A decretação de prisões em flagrante pela autoridade policial, operadas sob tal justificativa, deve ser rechaçada a Luz da Lei 12.830/13, Lei 4898/65, portarias da própria polícia, como DGP 23/2013 e a do próprio DPPC 04/2013.

A nosso ver é necessário o quanto antes que se defina na Doutrina e na Jurisprudência a impropriedade e insegurança jurídica que traz a lei 8137/90 no que tange aos crimes contra as relações de consumo, já que  várias posições até então se mostram indefinidas; Melhorar seria; uma norma penal de igual grandeza, não podendo por ora, prisão ou expropriação de bens do cidadão ser integrada ou justificada por disposições regulamentadas em decretos de cunhos civis ou comerciais.

 Enderson Blanco–Advogado Criminalista – especializado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.