O acordo de colaboração premiada enquadra-se na categoria negócio jurídico processual.
Antônio Junqueira de Azevedo, após criticar as definições de negócio jurídico pela gênese (“como ato de vontade”) e pela função (“como norma jurídica concreta”), prefere defini-lo por sua estrutura:
“O negócio jurídico, estruturalmente, pode ser definido ou como categoria, isto é, como fato jurídico abstrato, ou como fato, isto é, como fato jurídico concreto. Como categoria, ele é a hipótese de fato jurídico (às vezes dita ‘suporte fático’), que consiste em uma manifestação de vontade cercada de certas circunstâncias (as circunstâncias negociais) que fazem com que socialmente essa manifestação seja vista como dirigida à produção de efeitos jurídicos; negócio jurídico, como categoria, é, pois, a hipótese normativa consistente em declaração de vontade (…). In concreto, negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide” (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/1/02). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4-16).
Assentada essa premissa, segundo Otávio Luiz Rodrigues Júnior,
“é possível definir negócio-jurídico processual como uma declaração de vontade, unilateral ou bilateral, dirigida ao fim específico da produção de efeitos no âmbito do processo, de que é exemplo, no processo civil, a transação em juízo (art. 267, III, CPC)” (Estudo dogmático da forma dos atos processuais e espécies. Revista Jurídica, n. 321, ano 52. Porto Alegre: Notadez, julho/2004, p. 53).
A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração.
Dito de outro modo, embora a colaboração premiada tenha repercussão no direito penal material (ao estabelecer as sanções premiais a que fará jus o imputado-colaborador, se resultar exitosa sua cooperação), ela se destina precipuamente a produzir efeitos no âmbito do processo penal.
Quanto ao emprego da denominação “imputado” para qualificar o sujeito passivo da persecução penal, Rodrigo Capez observa que “na fase da investigação preliminar, há suspeito, investigado ou indiciado, de acordo com o menor ou maior grau de possibilidade (suspeito, investigado) ou de probabilidade (indiciado) de autoria. Acusado, por sua vez, é o sujeito passivo da ação penal, a pessoa contra quem se deduz a pretensão acusatória.
Desta feita, somente é possível falar-se em acusado com o oferecimento da denúncia ou queixa, quando se formaliza uma imputação contra o denunciado ou querelado.
Nesse sentido, antes mesmo do recebimento da denúncia ou queixa, já há acusado ou réu. O Código de Processo Penal italiano, ao disciplinar a fase de investigação preliminar, se refere ao investigado, nos arts. 61 e 415-bis, como ‘persona sottoposta alle indagini preliminari’ (‘pessoa submetida à investigação preliminar’) ou ‘indagato’ (‘inquirido’), substantivo de uso corrente na praxe judiciária italiana, mas ‘pouco elegante’, nas palavras de Paolo Tonini. Por sua vez, imputado (‘imputato’) é a pessoa a quem o Ministério Público, no exercício da ação penal, atribui (= imputa) o delito, nos termos dos arts. 60 e 405 do Código de Processo Penal italiano.
De acordo com Mario Chiavario, o termo ‘acusado’, embora não fosse usual ‘na tradição processual-penalística italiana’, veio a ser incorporado pela Constituição italiana no art. 111, inc. 3, que trata das garantias processuais da pessoa acusada (‘accusata’) de um crime. Referido autor observa ainda que, na tradicional terminologia legislativa italiana, é central o emprego da expressão ‘imputato’, que assume essa condição após o exercício da ação penal e a correlata formulação da imputação.
Feito o paralelo com a legislação italiana, resta verificar se existe, no processo penal brasileiro, um termo mais abrangente, que possa compreender todas as qualificações passíveis de emprego ao longo da persecução penal (suspeito, investigado, indiciado, denunciado, querelado, acusado, réu).
A expressão ‘acusados em geral’, embora adotada pela Constituição Federal no art. 5º, LV, não parece a mais adequada, porque a qualificação ‘acusado’ traz ínsita a ideia de ação penal já exercida.
José Frederico Marques observa que ‘muita confusão existe a respeito do nomen juris ou designação que se deva dar a quem é sujeito de uma acusação criminal’. Cita doutrina no sentido de que, em face do sistema misto do Código de Instrução Criminal francês, a denominação de imputado caberia àquele que é sujeito passivo do procedimento instrutório, ou judicium accusationis, reservando-se a designação de acusado para a pessoa submetida ao juízo pleno da causa. Registra ainda, citando doutrina chilena, a expressão inculpado, que designaria o indivíduo suspeito, contra o qual surgem os primeiros indícios de autoria.
Para Frederico Marques, no processo penal condenatório, é a imputação que delimita o objeto da persecução criminal. ‘Desde a notitia criminis a imputação surge e aparece, embora configurando-se imprecisa e incipiente.
Na acusação, a causa petendi é a própria imputação. Finalmente, a sentença condenatória nada mais é que a imputação certa e provada como prius e fundamento das sanções jurídico-penais. Como imputar é atribuir a alguém um fato delituoso, tanto a notícia do crime como a acusação contêm uma qualificação provisória desses fatos que descreve, consistente no enquadramento desses fatos na descrição típica contida na norma penal incriminadora.
Na imputação, há os seguintes elementos:
a) descrição de fatos; b) qualificação jurídico-penal desses fatos; c) atribuição dos fatos descritos a alguém’ (…) Na notícia do crime há uma imputação possível, que se transforma em provável quando da acusação, e que se torna certa, ao ser proferida a sentença condenatória.
Nessa esteira, pensamos que, embora destoe do rigor do processo penal italiano, a expressão ‘imputado’ melhor se conforma a qualificar o sujeito passivo da persecução penal, ao longo de todo o seu arco (investigação preliminar e ação penal)” (A individualização da medida cautelar pessoal no processo penal brasileiro. São Paulo, 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade de São Paulo, p. 53/54, grifei).
Note-se que a Lei nº 12.850/13 expressamente se refere a um “acordo de colaboração” e às “negociações” para a sua formalização, a serem realizadas “entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor” (art. 4º, § 6º), a confirmar que se trata de um negócio jurídico processual.
Dentre os relevantes efeitos processuais do acordo de colaboração, destacam-se os previstos no art. 4º da Lei nº 12.850/13: i) “o prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional” (§ 3º); ii) “o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou for o primeiro a prestar efetiva colaboração (§ 4º); e iii) “nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade” (§ 14). Além disso, nos termos do art. 5º da Lei nº 12.850/13, o acordo de colaboração judicialmente homologado confere ao colaborador o direito de: i) ”usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica”; ii) “ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados”; iii) “ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes”, e iv) “participar das audiências sem contato visual com os outros acusados”. Indubitável, portanto, tratar-se de um negócio jurídico processual.
Outrossim, de acordo com Antônio Junqueira de Azevedo, o exame do negócio jurídico deve ser feito em três planos sucessivos: i) da existência, pela análise de seus elementos, a fim de se verificar se o negócio é existente ou inexistente; ii) da validade, pela análise de seus requisitos, a fim de se verificar se o negócio existente é válido ou inválido (subdividido em nulo e anulável); e iii) da eficácia, pela análise de seus fatores, a fim de se verificar se o negócio existente e válido é eficaz ou ineficaz em sentido estrito (op. cit., p. 23-64). Ao tratar do plano da existência, o saudoso Mestre da “velha e sempre nova Academia de Direito” do Largo de São Francisco aduz que:
“elemento do negócio jurídico é tudo aquilo que lhe dá existência no campo do direito. Classificam-se, conforme o tipo de abstração, em elementos gerais, isto é, próprios de todo e qualquer negócio jurídico; categoriais, isto é, próprios de cada tipo de negócio; e particulares, isto é, existentes, sem serem gerais ou categoriais, em determinado negócio. Os elementos gerais subdividem-se em intrínsecos (ou constitutivos), que são a forma, o objeto e as circunstâncias negociais, e extrínsecos, que são o agente, o lugar e o tempo do negócio. As categoriais subdividem-se em inderrogáveis (ou essenciais) e derrogáveis (ou naturais); os primeiros definem o tipo de negócio e os segundos apenas defluem de sua natureza, sem serem essenciais à sua estrutura (…)” (op. cit., p. 31-40).
Por sua vez, validade é “(…) a qualidade que o negócio deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas (‘ser regular’). Validade, é, pois, como o sufixo da palavra indica, qualidade de um negócio existente. ‘Válido’ é adjetivo com que se qualifica o negócio jurídico formado de acordo com as regras jurídicas” (Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit., p. 42). Assim, requisitos de validade são as qualidades que os elementos do negócio jurídico devem ter para que esse seja válido.
“Por isso mesmo, se o negócio jurídico é declaração de vontade e se os elementos gerais intrínsecos, ou constitutivos, são essa mesma declaração tresdobrada em objeto, forma e circunstâncias negociais, e se os requisitos são qualidades dos elementos, temos que: a declaração de vontade, tomada principalmente como um todo, deverá ser: a) resultante de um processo volitivo; b) querida com plena consciência da realidade; c) escolhida com liberdade; d) deliberada sem má-fé (se não for assim, o negócio poderá ser nulo, por exemplo, no primeiro caso, por coação absoluta, ou falta de seriedade; anulável por erro ou dolo, no segundo; por coação relativa, no terceiro; e por simulação, no quarto).
O objeto deverá ser lícito, possível e determinado ou determinável; e a forma, ou será livre, porque a lei nenhum requisito nela exige, ou deverá ser conforme a prescrição legal.
Quanto às circunstâncias negociais, não têm requisitos exclusivamente seus, já que elas são o elemento caracterizador da essência do próprio negócio, são aquele quid que qualifica uma manifestação, transformando-a em declaração.
Quanto aos elementos gerais extrínsecos, temos que: a) o agente deverá ser capaz e, em geral, legitimado para o negócio; b) o tempo, se o ordenamento impuser que o negócio se faça em um determinado momento, quer essa determinação seja em termos absolutos, quer seja em termos relativos (isto é, por relação a outro ato ou fato), deverá ser o tempo útil; e c) o lugar, se, excepcionalmente, tiver algum requisito, há de ser o lugar apropriado”.
Finalmente, “o terceiro e último plano em que a mente humana deve projetar o negócio jurídico para examiná-lo é o plano da eficácia. Nesse plano, não se trata, naturalmente, de toda e qualquer possível eficácia prática do negócio, mas sim, tão só, da sua eficácia jurídica e, especialmente, da sua eficácia própria ou típica, isto é, da eficácia referente aos efeitos manifestados como queridos”
De fato, muitos negócios, para a produção de seus efeitos, necessitam dos fatores de eficácia, entendida a palavra fatores como algo extrínseco ao negócio, algo que dele não participa, que não o integra, mas contribui para a obtenção do resultado visado. São, por exemplo, casos de negócios, que precisam de fatores de eficácia, os atos subordinados a condição suspensiva. Enquanto não ocorre o advento do evento, o negócio, se tiver preenchido todos os requisitos, é válido, mas não produz efeitos; certamente, a condição como cláusula faz parte (é elemento) do negócio, mas uma coisa é a cláusula e outra o evento a que ela faz referência; o advento do evento futuro é, nesse caso, um fator de eficácia (é extrínseco ao ato e contribui para a produção dos efeitos).Dados esses exemplos, passamos a apresentar uma classificação dos fatores de eficácia.
Três nos parecem ser as espécies de fatores de eficácia: a) os fatores de atribuição da eficácia em geral, que são aqueles sem os quais o ato praticamente nenhum efeito produz; é o que ocorre no primeiro exemplo citado (ato sob condição suspensiva), em que, durante a ineficácia, poderá haver a possibilidade de medidas cautelares, mas, quanto aos efeitos do negócio, nem se produzem os efeitos diretamente visados, nem outros, substitutivos daqueles; b) os fatores de atribuição da eficácia diretamente visada, que são aqueles indispensáveis para que um negócio, que já é de algum modo eficaz entre as partes, venha a produzir exatamente os efeitos por ele visados; quer dizer, antes do advento do fator de atribuição da eficácia diretamente visada o negócio produz efeitos, mas não os efeitos normais; os efeitos, até a ocorrência do fator de eficácia, são antes efeitos substitutivos dos efeitos próprios do ato; é o que ocorre no segundo exemplo citado, em que o negócio, realizado entre o mandatário sem poderes e o terceiro, produz, entre eles, seus efeitos, que, porém, não são os efeitos diretamente visados; c) os fatores de atribuição de eficácia mais extensa, que são aqueles indispensáveis para que um negócio, já com plena eficácia, inclusive produzindo exatamente os efeitos visados, dilate seu campo de atuação, tornando-se oponível a terceiros ou, até mesmo, erga omnes; é o que ocorre no terceiro e último exemplo dado (cessão de crédito notificada ao devedor e registrada) – Antônio Junqueira de Azevedo. op. cit., p. 49-61. Embora essa doutrina se refira ao negócio jurídico privado, sua lição é inteiramente aplicável ao negócio jurídico processual da colaboração premiada.
Segundo Orlando Gomes
“para a formação de um contrato, são necessárias duas ou mais declarações de vontade que se integram. É preciso, numa palavra, o acordo . (…) A declaração feita em primeiro lugar, visando a suscitar a formação do contrato, chama-se proposta ou oferta. Aquele que a emite, tomando a iniciativa do contrato, é denominado proponente ou policitante. A declaração que se lhe segue, indo-lhe ao encontro para com a primeira se harmonizar, denomina-se aceitação. Àquele que a faz se designa aceitante ou oblato ” (Contratos. 1. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1959. p. 64-65). Enquanto “a proposta é uma declaração de vontade dirigida a alguém com quem se quer contratar”, “a aceitação é a palavra afirmativa a uma proposta de contrato”, em que “o aceitante integra a sua vontade na do proponente, emitindo uma declaração ou realizando atos que a exteriorizam (…)” (Orlando Gomes, op. cit., p. 64-70).
No caso da colaboração premiada, uma vez aceita por uma das partes a proposta formulada pela outra, forma-se o acordo de colaboração, que, ao ser formalizado por escrito, passa a existir (plano da existência). Não se confundem, assim, “proposta” e “acordo”, tanto que a “proposta” é retratável, nos termos do art. 4º, § 10, da Lei nº 12.850/13, mas não o acordo. Se o colaborador não mais quiser cumprir seus termos, não se cuidará de retratação, mas de simples inexecução de um negócio jurídico perfeito . O art. 6º, da Lei nº 12.850/13 estabelece os elementos de existência do acordo de colaboração premiada. Esse acordo deverá ser feito por escrito e conter: i) o relato da colaboração e seus possíveis resultados; ii) as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; iii) a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; e iv) as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor.
Por sua vez, “a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família”, prevista no inciso V do referido dispositivo legal, afigura-se um elemento particular eventual, uma vez que o acordo somente disporá sobre tais medidas “quando necessário”.
Quanto ao plano subsequente da validade, o acordo de colaboração somente será válido se: i) a declaração de vontade do colaborador for a ) resultante de um processo volitivo; b ) querida com plena consciência da realidade; c ) escolhida com liberdade e d) deliberada sem má-fé; e ii) o seu objeto for lícito, possível e determinado ou determinável.
Nesse sentido, aliás, o art. 4º, caput e seu § 7º, da Lei nº 12.850/13 exige, como requisitos de validade do acordo de colaboração, a voluntariedade do agente, a regularidade e a legalidade dos seus termos.
Destaco que requisito de validade do acordo é a liberdade psíquica do agente, e não a sua liberdade de locomoção. A declaração de vontade do agente deve ser produto de uma escolha com liberdade (= liberdade psíquica), e não necessariamente em liberdade, no sentido de liberdade física.
Portanto, não há nenhum óbice a que o acordo seja firmado com imputado que esteja custodiado, provisória ou definitivamente, desde que presente a voluntariedade dessa colaboração.
Entendimento em sentido contrário importaria em negar injustamente ao imputado preso à possibilidade de firmar acordo de colaboração e de obter sanções premiais por seu cumprimento, em manifesta vulneração ao princípio da isonomia.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello,
“o ponto nodular para o exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade . 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 37).
Em suas palavras, para que um discrímen legal seja convivente com a isonomia, impende que concorram quatro elementos:
“a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte numa diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público” (op. cit., p. 41).
Ora, não há correlação lógica entre supressão da liberdade física do agente (critério de discrímen) e a vedação ao acordo de colaboração (discriminação decidida em função daquele critério), uma vez que o fator determinante para a colaboração premiada é a liberdade psíquica do imputado, vale dizer, a ausência de coação, esteja ele ou não solto. Tanto isso é verdade que, mesmo que esteja preso por força de sentença condenatória, o imputado poderá formalizar, após seu trânsito em julgado, um acordo de colaboração premiada (art. 4º, § 5º, da Lei nº 12.850/13).
De toda sorte, a liberdade de escolha do imputado merece reflexão maior, notadamente quando se imbrica com o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII, CF). De acordo com Maria Elizabeth Queijo, a expressão nemo tenetur se detegere significa que ninguém é obrigado a se descobrir, equivalente à máxima latina nemo tenetur se accusare (ninguém é obrigado a se acusar), a qual, no direito anglo-americano, traduz-se no privilege against self-incrimination (O direito de não produzir prova contra si mesmo . São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4).
O reconhecimento do privilégio contra a autoincriminação se funda no instinto ou dever natural de autopreservação (João Cláudio Couceiro . A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 25). Representa, ainda, o respeito à dignidade da pessoa humana no processo penal e a vedação da produção de provas que impliquem violação de direitos do imputado, numa limitação à busca da verdade (Maria Elizabeth Queijo. op. cit., p. 45). Por ser um direito fundamental constitucionalmente assegurado, seu exercício jamais poderá produzir qualquer efeito desfavorável ao imputado, razão por que não se limita à mera vedação a que, na valoração da prova, importe confissão ou seja interpretado em prejuízo da defesa (art. 186 e seu parágrafo único, CPP). Assim, é manifestamente ilegítima, por ausência de justificação constitucional, a adoção de medidas cautelares de natureza pessoal, notadamente a prisão temporária ou preventiva, que tenham por finalidade obter a colaboração ou a confissão do imputado, a pretexto de sua necessidade para a investigação ou a instrução criminal (Odone Sanguiné. Prisão cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 248-249. Cristina Guerra Pérez. La decisión judicial de prisión preventiva – análisis jurídico y criminológico. Valência: Tirant lo Blanch, 2010. p.162. Andrey Borges de Mendonça. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011. p. 277-280). Como assevera Vittorio Grevi, em nenhuma hipótese o exercício do direito ao silêncio pode ser colocado como fundamento, no terreno do periculum libertatis, de uma medida cautelar pessoal, que jamais pode ser adotada com o fim de induzir o imputado a colaborar com a autoridade judiciária (Compendio di procedura penale . In: CONSO, Giovanni; GREVI, Vittorio; BAGIS, Marta (orgs). 6. ed. Pádua: CEDAM, 2012. p. 394-395 e p. 401-403).
Nesses casos, embora constitucional a norma em abstrato, na apontada incidência ela produziu um resultado inconstitucional (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 347, nota de rodapé nº 6). Essa questão não é cerebrina, pois o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a ilegitimidade constitucional de prisão preventiva cuja razão preponderante tenha sido a recusa da imputada, no exercício do direito ao silêncio, em responder ao interrogatório judicial a que submetida (HC nº 99.289/RS, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 4/8/11). O Supremo Tribunal Federal também decidiu que carece de legitimidade constitucional, por manifesta ofensa ao privilégio contra a autoincriminação, a decretação da prisão temporária ou preventiva do imputado por seu não comparecimento à delegacia de polícia para prestar depoimento (HC nº 89.503/RS, Segunda Turma, Relator o Ministro Cezar Peluso, DJ de 8/6/07) ou “por falta de interesse em colaborar com a Justiça”, supostamente evidenciada pelo fato de os réus “haverem respondido às perguntas de seus interrogatórios de forma desdenhosa e evasiva, mesmo sabedores de que tais versões não encontram guarida no caderno investigatório” (HC nº 79.781/SP, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 9/6/2000). E não é só. Como aduz Rodrigo Capez, “[a]inda que, explicitamente, não seja essa a motivação da decisão, caso se constate, inclusive pela forma de atuação extraprocessual do juiz ou dos órgãos da persecução penal, que o verdadeiro objetivo da prisão cautelar é forçar a colaboração do imputado, sua inconstitucionalidade será patente, uma vez que é vedada a utilização da decretação ou da manutenção da prisão cautelar como instrumento de barganha com o imputado, no intuito de coagi-lo a colaborar” (op. cit. p. 289). Nesse particular, o Supremo Tribunal Federal, no HC nº 127.186/PR, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 3/8/15, assentou que “(…) seria extrema arbitrariedade – que certamente passou longe da cogitação do juiz de primeiro grau e dos Tribunais que examinaram o presente caso, o TRF da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça – manter a prisão preventiva como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a Lei, deve ser voluntária (Lei 12.850/13, art. 4º, caput e § 6º). Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada”.
Finalmente, superados os planos da existência e da validade, chegase ao plano da eficácia: o acordo existente e válido somente será eficaz se for submetido à homologação judicial (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13).
Esse provimento interlocutório, que não julga o mérito da pretensão acusatória, mas sim resolve uma questão incidente, tem natureza meramente homologatória, limitando-se a se pronunciar sobre a “regularidade, legalidade e voluntariedade” do acordo (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13).
Para Cândido Rangel Dinamarco,
“Homologar significa agregar a um ato realizado por outro sujeito a autoridade do sujeito que a homologa. Ao homologar atos das partes ou dos auxiliares da Justiça, o juiz os jurisdicionaliza (Pontes de Miranda), outorgando-lhe a eficácia dos que ele próprio teria realizado. A homologação dos atos dispositivos das partes é um invólucro, ou continente, cujo conteúdo substancial é representado pelo negócio jurídico realizado por elas.
Ao homologar um ato autocompositivo celebrado entre as partes, o juiz não soluciona questão alguma referente ao meritum causae. Limita-se a envolver o ato nas formas de uma sentença, sendo-lhe absolutamente vedada qualquer verificação da conveniência dos negócios celebrados e muito menos avaliar as oportunidades de vitória porventura desperdiçadas por uma das partes ao negociar. ‘Essas atividades das partes constituem um limite ao poder do juiz, no sentido de que trazem em si o conteúdo de sua sentença’ (Chiovenda).
Se o ato estiver formalmente perfeito e a vontade das partes manifestada de modo regular, é dever do juiz resignar-se e homologar o ato de disposição do direito, ainda quando contrário à sua opinião” (Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 6. ed., 2009. v. III, p. 272-273).
No processo civil, prossegue Cândido Rangel Dinamarco, o juiz
“procede ao exame externo dos atos dispositivos, mediante uma atividade que se chama de delibação, cumprindo ao juiz permanecer na periferia do ato das partes, em busca dos requisitos de sua validade e eficácia”. Assim, “como a sentença homologatória não influi no conteúdo dos atos negociais das partes – e limita-se a acrescer-lhes a imperatividade que teria o próprio e verdadeiro julgamento de mérito, é naqueles que se definem os resultados do processo – e não no ato puramente homologador” (op. cit. p. 273-274).
Nessa atividade de delibação, o juiz, ao homologar o acordo de colaboração, não emite nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores.
Ministro Teori Zavascki esclarece:
“ o âmbito da cognição judicial na decisão que homologa o acordo de colaboração premiada é limitado ao juízo a respeito da higidez jurídica desse ato original. Não cabe ao Judiciário, nesse momento, examinar aspectos relacionados à conveniência ou à oportunidade do acordo celebrado ou as condições nele estabelecidas, muito menos investigar ou atestar a veracidade ou não dos fatos contidos em depoimentos prestados pelo colaborador ou das informações trazidas a respeito de delitos por ele revelados. É evidente, assim, que a homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, nem pode conter, juízo algum sobre a verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às declarações do colaborador, declarações essas às quais, isoladamente consideradas, a própria lei atribuiu escassa confiança e limitado valor probatório (“Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”, diz o § 16 do art. 4º da Lei 12.850/2013)”.
Em outras palavras, a homologação judicial do acordo de colaboração premiada não significa, em absoluto, que o juiz admitiu como verídicas ou idôneas as informações eventualmente já prestadas pelo colaborador e tendentes à identificação de coautores ou partícipes da organização criminosa e das infrações por ela praticadas ou à revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa.
A homologação judicial constitui simples fator de atribuição de eficácia do acordo de colaboração. Sem essa homologação, o acordo, embora possa existir e ser válido, não será eficaz, ou seja, não se produzirão os efeitos jurídicos diretamente visados pelas partes. Cabe aqui uma ressalva: se o juiz se limitar a homologar, in totum, o acordo, essa decisão deverá ser considerada fator de atribuição de eficácia. Todavia, se o juiz intervier em seus termos, para glosar cláusulas (v.g., por ilegalidade) ou readequar sanções premiais, de modo a modificar a relação jurídica entre as partes, a decisão homologatória do acordo de colaboração deverá ser considerada elemento de existência desse negócio jurídico processual.
Finalmente, havendo um acordo de colaboração existente, válido e eficaz, nos termos do art. 4º, I a V, da Lei nº 12.850/13, a aplicação da sanção premial nele prevista dependerá do efetivo cumprimento pelo colaborador das obrigações por ele assumidas, com a produção de um ou mais dos seguintes resultados: a) identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; b) revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; c) prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; d) recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; e) localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Se não sobrevier nenhum desses resultados concretos para a investigação, restará demonstrado o inadimplemento do acordo por parte do colaborador, e não se produzirá a consequência por ele almejada (aplicação da sanção premial).
Artigos: Blanco advocacia -advogados criminalistas associados