Atualmente tem sido recorrente as fiscalizações a procura de irregularidades trabalhistas de auditores fiscais com objetivo de vistoriar ambientes suspeitos de trabalhos escravos no Brasil.

Dentre essas visitas não são raros relatórios sobre pretexto de terem sido constatadas irregularidades trabalhistas, como condições degradantes nas moradias, condições degradantes nas frentes de trabalho, fornecimento inadequado de equipamentos de proteção individual, não disponibilização, no alojamento e frentes de trabalho, de material de primeiros socorros e não implementação de ações de segurança e saúde em benefício dos trabalhadores, etc.

Assim, apontada pelos fiscais essas supostas irregularidades, normalmente por força do poder de polícia são paralisadas as atividades, o estabelecimento normalmente é multado e fechado, os funcionários são submetidos a rescisão do contrato de trabalho, enfim, são tomadas várias medidas administrativas para impedir a funcionalidade do negócio e que os funcionários continuem sendo submetidos ou expostos a risco.

Além dessas medidas, as empresas ficam sujeitas a uma lista negra do trabalho escravo no Brasil, e divulgado em diversos sites, causando-lhe enormes constrangimentos, além de transtornos pessoais, profissionais e financeiros.

Com efeito, as pessoas ali inseridas sofrem efeitos nefastos e consequências quase irreversíveis, pois, além de ficarem terrivelmente expostas perante a sociedade, perdem o acesso a financiamentos em bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco do Brasil, os quais assinaram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.

Além disso, os bancos privados também se valem dessa informação sobre as irregularidades em suas avaliações de risco de crédito, encarecendo sobremodo eventual financiamento.

No entanto, apesar de todas essas ações que de certo modo já são suficientes para coibir a prática de infrações trabalhistas, ainda assim, muito tem se visto as representações penais contra os empregadores por reduzir seus funcionários a condição análoga de escravo, tipificando equivocadamente infrações meramente administrativas em condutas criminais das quais normalmente são muito mal compreendida no artigo 149 do Código Penal.

Irregularidades Trabalhistas no CP

Como se sabe, irregularidades trabalhistas não devem ser solucionadas pelo Direito Penal, mas pelo Direito do Trabalho, se for o caso, vejamos os principais motivos.

Dispõe o Artigo 149 do Código Penal:                                                                                                                                    Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).

Como se vê, o legislador deixou um tipo penal aberto ao dizer que trabalho degradante é escravidão, ao qual se traduz pela expressão acima em destaque “condições degradantes de trabalho”.

Nesta seara, necessário se faz que a denúncia criminal demonstre através dos elementos colhidos na investigação criminal que os fatos apurados pela fiscalização do Ministério do Trabalho ultrapassam justificadamente a mera infração administrativa.

Afirmar genericamente como normalmente ocorre que os funcionários estavam expostos a risco por falta de equipamentos seguros ou que estavam alojados em locais insalubres, etc, laborando sem as mínimas condições de trabalho, saúde e segurança por si só não caracteriza o crime tipificado no artigo 149 do CP.

Vale dizer que no crime em estudo a vítima deve estar sendo submetida a condições semelhantes à de um escravo, o que não se confunde com a situação de escravo propriamente, pois para este há a despersonalização do sujeito, que é tratado como coisa, perdendo, portanto, sua personalidade, e, por conseguinte, sua dignidade pessoal.

Por outro lado, cumpre ressaltar que o dispositivo penal em estudo não possui o condão de disciplinar as irregularidades de cunho meramente trabalhistas, como o desrespeito a condições de saúde e segurança ou a eventual extrapolação da jornada de trabalho. Tais circunstâncias, não devem ser analisadas sob a égide do direito penal, e tampouco pode ser confundido, a priori, com trabalho análogo ao de escravo.

Segundo a atual redação do art. 395, III, do CPP, a denúncia e a queixa devem ser rejeitadas por falta de justa causa, quando esta se configurar. A justa causa pressupõe, por sua vez, a imputação de uma conduta típica, ilícita e culpável consubstanciada nos autos, tendo a natureza jurídica de pressuposto processual, agora, diverso dos pressupostos processuais de existência e validade do processo.

Conjugando-se a regra do art. 41 combinando com a do art. 395, inc. III, ambos do Código de Processo Penal, constata-se que falta justa causa para a regular instauração de uma ação penal, quando não há clara, objetiva e precisa imputação de uma conduta definida como crime. E, logicamente, referida imputação tem que encontrar lastro probatório na prova do inquérito ou em peças de informação. Assim, deve-se, primeiramente, examinar se foi feita efetivamente a imputação de um crime e, ato contínuo, examinar se ela tem respaldo probatório.

O Direito Penal, como ramo fragmentário do direito, ocupa-se de pontos específicos do ordenamento jurídico como última ratio na proteção de determinado bem jurídico. A sua intervenção deve ocorrer apenas em situações de extrema gravidade, justificando assim a severidade das penas aplicadas ao crime incorrido.

Aliás, a esse respeito tivemos a oportunidade de destacar, verbis: “O princípio da intervenção mínima, também conhecido como última ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes.

Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais”.

Por isso, o Direito Penal deve ser a última ratio do sistema normativo, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito se revelarem incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

Nesse Sentido:                                                                                                                                                PROCESSUAL PENAL. PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CP. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. FALTA DE JUSTA CAUSA RECURSO NÃO PROVIDO.

I – Falta à denúncia suporte probatório mínimo que demonstre ofensa, por parte do réu, aos bens penalmente protegidos pelo art. 149 do CP, a liberdade individual e a dignidade do trabalhador.

II – Verifica-se que no Relatório de Fiscalização em Zona Rural (fl. 06/18) elaborado por auditores fiscais do MTE, não há qualquer referência à trabalho escravo do único empregado do acusado encontrado na fazenda vistoriada. Há, segundo o relatório, violações de normas, é certo, trabalhistas e administrativas, mas não se vislumbra fato penalmente relevante (sujeição), mormente considerando que não há nos autos qualquer depoimento da vítima sobre as alegadas condições degradantes de trabalho, há indícios que o ofendido ia ao trabalho em veículo próprio, que utilizava as mesmas instalações do acusado já que a fazenda encontrava-se em fase de “abertura e formação” (fl. 08) e que os direitos trabalhistas do ofendido foram honrados pelo acusado durante o período da fiscalização (f1.09).

III – Nesse sentido, têm decidido esta Turma que: “Tenha-se em mente, por exemplo, os fatos muito comuns em que as autoridades relatam como sendo caso de “trabalho escravo” a existência de trabalhadores em local sem instalações adequadas, como banheiro, refeitório etc., sem levar em conta que o próprio empregador utiliza-se das mesmas instalações e que estas são, na maioria das vezes, o retrato da própria realidade interiorana do Brasil. Há que se estar atento, portanto, para a possibilidade de abusos na tipificação de fatos tidos como de “trabalho escravo. (Ministro Gilmar Mendes – RE 398.041/PA) 3. Apelação não provida. (ACR 0001748-25.2008.4.01.4300 / TO, Rel. JUIZ TOURINHO NETO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.41 de 05/11/2010). IV – Recurso em sentido estrito que se nega provimento. (RSE 0000008-44.2012.4.01.3604 / MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO, Rel. Conv. JUIZ FEDERAL ALEXANDRE BUCK MEDRADO SAMPAIO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.1075 de 14/11/2013).

Logo, se trata de conduta absolutamente atípica, que deve insistentemente ser buscado pela defesa criminal à “absolvição sumária” do acusado por falta de justa causa.

Fonte:

* Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais. (STF, Inq nº 3412/AL, Tribunal Pleno, Ministro MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROSA WEBER, julgado em 29/03/2012) – sem grifos no original

* Doutrina: Lições de Cezar Roberto Bitencourt: afirma que reduzir significa sujeitar uma pessoa a outra, em condição semelhante à de escravo, isto é, a condição deprimente e indigna. Consiste em submeter alguém a um estado de servidão, de submissão absoluta, semelhante, comparável à de escravo. É, em termos bem esquemáticos, a submissão total de alguém ao domínio do sujeito ativo, que o reduz à condição de coisa (Tratado de Direito Penal – Parte Especial, Volume 2, 12ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva). A ideia de coisificação do trabalhador está assentada na jurisprudência brasileira, exigindo a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano.

* Doutrina: Guilherme de Souza Nucci, ao comentar o artigo 149 do Código Penal, leciona que, para a consumação do delito, é necessário que exista uma submissão fora do comum, como é o caso do trabalhador aprisionado em uma fazenda, com ou sem recebimento de salário, porém, sem conseguir dar rumo próprio à sua vida, porque impedido por seu pretenso patrão, que, em verdade, busca atuar como autêntico dono da vítima (Código Penal Comentado. 7ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais).

https://g1.globo.com/sp/mogi-das-cruzes-suzano/noticia/bolivianos-em-situacao-de-trabalhoescravo-sao-encontrados-em-fabrica-em-itaquaquecetuba-diz-policia.ghtml

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/10/mpt-pede-fechamento-de-oficina-porsuspeita-de-trabalho-escravo-em-sp.html

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