Como se sabe, conforme nós ensina Walter Bittar, a Delação premiada é “instituto de Direito Penal que garante ao investigado, indiciado, acusado ou condenado, um prêmio, redução podendo chegar até a liberação da pena, pela sua confissão e ajuda nos procedimentos persecutórios, prestada de forma voluntária (isso quer dizer, sem qualquer tipo de coação)”.
Nos termos do regramento da Lei 12.850/2013 com a colaboração efetiva e voluntária o investigado ou acusado, poderá obter a) redução de um a dois terços na pena (art.4º, caput); b) perdão judicial (art.4º caput) c) conversão em restritiva de direitos (art.4º, caput), d) redução até até a metade ou progressão de regime, se a colaboração for durante a fase de execução (art.4º,§ 5º); e) não oferecimento da denúncia, é uma possibilidade inovadora no ordenamento jurídico vigente, visto que avança na introdução de exceções ao principio da obrigatoriedade da ação penal de iniciativa pública. é dela, portanto, que este artigo cuidará com objetivo de problematizar certas questões pertinentes.
Inicialmente, analisar-se-ão introdutoriamente tais princípios reitores do processo penal obrigatoriedade/legalidade e oportunidade) para, então, desvelar-se pontos nebulosos da nova legislação.
O princípio da legalidade em processo penal corresponde à obrigatoriedade da persecução punitiva. Ele caracteriza a ideia de que o MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infrações de cujos pressupostos -factuais e jurídicos, substantivos e processuais -tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes. Logo, há um dever de acusação decorrente da lei que se impõe quando houver indícios de materialidade e autoria suficientes da ocorrência de uma infração penal, o que não pode ser influenciado ou renunciado por razões discricionárias ou por motivos alheios à simples averiguação da existência ou não do crime a partir das provas obtidas. Em contraste à legalidade, “outra face de uma mesma moeda”, surge o princípio da oportunidade. Segundo Montero Aroca, pode-se dizer, em termos gerais, que a oportunidade supõe o “reconhecimento ao titular da ação penal da faculdade para dispor, conforme determinadas circunstâncias, de seu exercício, com independência de que se tenha acreditado na existência de um fato punível cometido por um autor determinado. Embora pense-se que tais definições são passíveis de críticas visando à e melhor adequação aos sistemas processuais penais em Estados Democráticos de Direito, em razão do espaço exíguo deste artigo elas serão adotadas como base para os pensamentos subsequentes.
Assim, a Lei 12.850/2013, dispõe o § 4º do art. 4º: “Nas mesma hipótese do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I- não for o líder da organização criminosa; II -for primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo”. O referido caput determina o cabimento da delação premiada ao acusado que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, quando disso advier um ou mais dos resultados ali elencados, como a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas, ou a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada, entre outros.
Trata-se de “acordo de imunidade”, cujo cabimento se admite com o cumprimento de tais requisitos. Contudo, se atendidas essas condições, questiona-se abertura do termo poderá: embora tal debate doutrinário apresente complexidade ímpar (remetendo-se a diversos escritos sobre os mecanismos da transação penal e da suspensão condicional do processo), pena-se que a não realização do acordo por motivos distintos dos pressupostos definidos em lei é inevitavelmente abusiva, de modo que o julgador (em sua posição de garantidor de direitos) deverá utilizar o art. 28 do CPP por analogia ou diretamente não receber eventual denúncia em que o acusado tenha colabora efetivamente e se enquadre nos incisos do § 4º do art. da lei 12.850/2013.
E se o promotor entender cabível o acordo de imunidade e concluir pelo não oferecimento da denúncia? Sustenta-se que, em um cenário ideal (em atenção ao modelo acusatório e à imparcialidade do julgador), o controle da postura de não acusar se realizaria internamente no Parquet, por meio de órgão hierarquicamente superior formado por representantes do próprio Ministério Público. Contudo, tal opção careceria de previsão legal expressa, de modo que no cenário atual do ordenamento processual penal brasileiro mostra-se como opção mais adequada a necessidade do controle judicial: o acusador público deve pedir o arquivamento da investigação, o qual passará pelo crivo homologatório do magistrado competente, que, em caso discordância (entender não cabível o arquivamento)0, de modo semelhante ao caso de não oferecimento da proposta de acordo, poderá utilizar a previsão do art. 28 do CPP por analogia. Por fim, qual será o fundamento para o arquivamento? Em pese a lacuna da Lei. 12850/2013, surge a aplicação por analogia do parágrafo único do art. 87 da Lei 12.529/2011 (que regula o acordo de leniência em meio ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), extinguindo a punibilidade do agente delator.
Percebe-se, portanto, que o §4º. do art. 4º da Lei 12.850/2013 introduziu hipótese de não obrigatoriedade (oportunidade) conforme os requisitos ali taxados, ou seja, em respeito à legalidade (em sua acepção ampla, como obrigação aos atores estatais da justiça criminal de pautar suas posturas e sua decisões em conformidade e, portanto, a partir da previsões legais, da imposições e limitações previstas em lei para o seu atuar. Desse modo resta cristalino que não há autorização à discricionariedade que vá além daquilo estritamente aberto pelos espaços interpretativos do texto legal. Por certo, somado aos apontamentos aqui expostos, fundamental é a análise crítica do instituto da delação premiada, a qual, embora fuja às pretensões deste artigo, deve se ressaltada diante do temerário cenário atual do processo penal contemporâneo, em que os acordos entre acusação e defesa para imposição de sanção penal a partir do reconhecimento de culpabilidade em troca de benefícios fragilizam a justiça criminal por acarretarem inevitáveis tensões a premissas fundamentais do processo penal democrático -necessariamente concebido com instrumento de limitação do poder punitivo estatal.