Como se sabe, após o advento da Lei 12.403/2011 foi introduzido medidas cautelares provisórias diversas da prisão, em especial, possibilitou o arbitramento de fiança ainda em sede policial para um rol de crimes dispostos no Código de Processo Penal quando a pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.
Com aplicação da nova legislação, dentro de uma cultura policial autoritária, a discricionariedade da autoridade ganhou maior relevância para aplicação de um senso de justiça imediato contrario a norma positivada. Certamente, não por desvio infracional administrativo, mas por foro íntimo de justiça.
Veja-se, na prática; ás respostas sobre as entrevistas de alguns investigadores sobre o arbitramento da fiança:
“a gente faz também uma fiança alta, em razão da periculosidade do autor, do agente, pela situação que ele foi preso, porque com a fiança alta ele acaba não tendo dinheiro para pagar, então ele fica preso. Então houve uma abrangência maior em relação a isso porque houve maior critério de discricionariedade do delegado em relação a isso, a possibilidade do delegado ter que fazer justiça, não cabe ao delegado fazer justiça, cabe à justiça fazer justiça, mas eu entendo que como o caso vem primeiro na nossa mão, há sim que dentro da lei fazer justiça”(delegado da PCERJ).
“Tento fazer justiça no primeiro momento. Primeiro verifico se merece o cárcere. Depois olho pro fato jurídico” (delegado da PCERJ).
“é complicado arbitrar fiança por furto, porque furta, depois vai para a rua, vai furtar de novo. Dá sensação de impunidade na sociedade. Tem de punir” (delegado da PCERJ).
“a lei não diz que a fiança é negada no caso do preso não ter residência fixa. Mendigos, por exemplo, têm de ficar presos para não ficar turbando a ordem. Deve-se levar em consideração sempre o sofrimento da vítima. Muitos praticantes de crimes afiançáveis não trabalham. Isso faz com que tenham maior dificuldade de pagar esses valores. O critério usado, na justificativa é se o preso vai voltar é delinquir e, assim, se é perigoso. A fiança leva em consideração quem é a pessoa e o que ela é capaz de fazer. Se for só um ladrão de oportunidade, pode arbitrar uma fiança média. Mas se for bandido, o papo é outro. A fiança geralmente fica sem pagar. Geralmente quem comete crime é morador de favela, morador de rua, não tem onde cair morto, não tem emprego, não tem dinheiro” (delegado da PCERJ).
A partir disso, podem-se compreender melhor as instituições e permitir que os entrevistados possam “estranhar” aquilo que fazem. Vale apontar, nesse sentido, que os atores policiais possuem parâmetros de pensamento e de ação que informam aquilo que eles fazem.
Ora, a fiança é uma contracautela, uma garantia patrimonial, caução real. É uma contracautela, pois substitui uma cautelar, no caso, a prisão em flagrante ou a prisão preventiva. A fiança, assim, tem a função de substituir essas medidas de prisão, mediante o pagamento de um valor pecuniário.
A ideia defendida para a existência dessa contracautela é impedir uma prisão antes do fim do processo, algo lesivo ao indivíduo. A quantia da fiança é prestada pelo suposto autor do fato, tendo a legislação atribuído a ela o papel de ser um fator inibidor de fuga, além de servir ao pagamento das despesas processuais, multa e indenização, em caso de condenação.
O Código de Processo Penal brasileiro, em seu art. 322, prevê que “a autoridade policial somente poderá conceder a fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos”. Assim, cabe ao Delegado de Polícia fixar a fiança para os crimes cuja pena máxima não for maior que quatro anos.
Vale salientar, ainda, que, se a pena privativa de liberdade máxima não for superior a dois anos, é, em regra, seguido o rito dos Juizados Especiais Criminais, previsto na Lei 9.099/1995. Nesse caso, não há prisão nem lavratura de auto de prisão em flagrante, mas apenas de Termo Circunstanciado. Nos demais casos, que não estiverem dentro do teto legal de quatro anos, a possibilidade de se arbitrar a fiança deve ser verificada pelo juiz.
Em outras palavras, na prática, as fianças podem ser arbitradas: (1) nas delegacias de polícia, por meio de decisão do delegado, quando alguém é preso em flagrante por crimes apenados com até quatro anos; (2) nas varas criminais competentes: no caso de a prisão em flagrante ser por um crime apenado com mais de quatro anos; pode ser aplicada também com o objetivo de ser uma das diversas medidas que substituem a prisão preventiva, nos casos em que esta for cabível. Em ambos os casos, o suposto autor do fato deve recolher um valor em dinheiro para substituir a sua prisão, que já está em curso ou em vias de ser decretada.
Na delegacia de polícia, quando paga o valor em dinheiro, é solto mediante um compromisso. Da mesma forma ocorre quando o pagamento é feito em juízo para a concessão da liberdade provisória.
Em sede policial, de acordo com a atual legislação processual penal, a fiança pode ser aplicada em valores entre um e 100 salários mínimos. No entanto, de acordo com o art. 325, § 1.º, do CPP brasileiro, ela pode ser reduzida em até 2/3 e aumentada em até 1.000 vezes. Sobre o critério de que a lei positiva prevê como norteador do valor da fiança, o art. 326 do CPP aponta como elementos: a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade e a importância provável das custas do processo.
Na verdade, em primeiro momento os indivíduos são avaliados por critérios morais, recebem fianças em valores que são suficientemente altos para que não sejam pagos. Esse sujeito é rotulado como perigoso e associado a diversos tipos. Contudo, a ideia de que voltará a praticar crimes, de que não tem mais jeito, de que é irrecuperável, aparece na justificativa dos delegados de polícia para manter o indivíduo preso.
Outros elementos surgem bastante como definidores dessas fianças altas: ter antecedentes; estar portando algum tipo de droga; ter praticado alguma agressão contra mulheres; ter uma “atitude arrogante” perante a polícia; ter descumprido alguma ordem judicial (como a cautelar de afastamento de corpos em casos de violência doméstica); viver nas ruas (mendigo); ou, simplesmente, ser alguém que o policial diz ter certeza de que é “bandido”.
Na prática evidencia-se julgamento da ação praticada para a moralidade do sujeito que a executa. Assim, não punem o fato, como propõe o discurso legal vigente no Brasil, mas um sujeito que o praticou.
A liberdade possui valores diferentes conforme esse julgamento moral produzido pelos delegados. Justificam essas práticas com rotulações de “bandido”, “ferrabrás”, “perigoso”. Nesse caminho, negam direitos de cidadania e reforçam a desigualdade jurídica, característica da sociedade brasileira. Para tanto, interpretam o direito legal, construindo seu próprio sistema de regras e práticas, uma “ética policial”, em outras palavras a autoridade policial faz o que bem entende.